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UMA LEI FORA DA LEI

O inquérito das fake news completa dois anos sem que os advogados dos réus tenham tido sequer acesso à íntegra do processo.

ma dúvida, leitor: você está sendo investigado pelo infame inquérito das fake news? A única resposta correta para esta pergunta é: “Não sei”. Os alvos do Inquérito 4.781, o inquérito das fake news, ainda não sabem do que estão sendo acusados nem como podem se defender.

Prisões de jornalistas eram comuns apenas na época da ditadura, mas agora fazem parte da normalidade do noticiário — e o aparato de investigação secreto do Estado passou a integrar a vida comum brasileira. Com apenas um inquérito, prisões de deputados por figuras que ignoram a imunidade parlamentar e bloqueio das contas nas redes sociais de um partido político minoritário como o PCO começaram a virar rotina no país.

Instaurado a partir da Portaria 69/19, de março de 2019, pelo ministro Dias Toffoli, o inquérito de natureza policial investigativa, que tem como relator o ministro Alexandre de Moraes, continua correndo em segredo, sem que se saiba quem está sendo investigado e quem não. Há dois anos, no dia 27 de maio de 2020, iniciou-se a operação mais chocante já vista por opiniões nas redes sociais no Brasil: foram cumpridos 29 mandados de busca e apreensão contra empresários, youtubers e até humoristas. Nenhum advogado teve acesso integral aos autos, nem há clareza sobre quais são as acusações.

Alexandre de Moraes, ministro do STF | Foto: STF/SCO

Passados mais de três anos desde a sua instauração, o inquérito visava a apurar a existência de “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandidiffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. É estranho à jurisprudência, e mesmo à lei, um inquérito (ainda mais instaurado de ofício) para investigar algo tão abrangente e de contornos porosos como “fake news”, que nem sequer são um crime tipificado no Código Penal. Tampouco uma mudança tão gigante no processo jurídico para punir uma leve injúria, que é um mero xingamento, e não costuma gerar punição em nenhum tribunal.

Absolutamente inconstitucional

Foi o próprio ministro Alexandre de Moraes quem afirmou: “Quem não quer ser criticado, quem não quer ser satirizado, fique em casa. Não seja candidato, não se ofereça ao público, não se ofereça para exercer cargos políticos. Essa é uma regra que existe desde que o mundo é mundo. Querer evitar isso por meio de uma ilegítima intervenção estatal na liberdade de expressão é absolutamente inconstitucional”. Posteriormente, também diria: “Eu defendo a absoluta liberdade de expressão, sou absolutamente contra censura prévia, mas quem diz o que quer tem que ter coragem de ser responsabilizado”, elencando a seguir muitas expressões que considera que não sejam amparadas pela liberdade de expressão.

Qualquer crítica ao inquérito pode acabar transformando o crítico em alvo do próprio inquérito

No terreno acadêmico, o inquérito foi criticado por inúmeros juristas, inclusive de esquerda, sendo extremamente difícil encontrar opiniões que o considerem um ato perfeitamente legítimo, amparado pela lei e pela normalidade processual do país.

O Inquérito 4.781 foi chamado pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello de “inquérito do fim do mundo”, também nome de batismo de um livro editado pela promotora Claudia Piovezan, que reuniu juristas para comentar “o apagar das luzes do Direito brasileiro”. O livro já teve a continuação Sereis Como Deuses: O STF e a Subversão da Justiça, com mais uma continuação no prelo.

A mudança que o inquérito das fake news promoveu não apenas no Direito brasileiro, mas na cultura e, claro, no jornalismo, é que qualquer crítica ao inquérito pode acabar transformando o crítico em alvo do próprio inquérito, por suposto “animus calumniandi, diffamandi e injuriandi“ contra membros da Suprema Corte. O que não faz parte da nossa intenção, naturalmente.

Entretanto, data maxima venia, elencamos alguns pontos que muitos juristas ainda não conseguem defender no inquérito com base na lei e na jurisprudência e que poderiam ser mais esclarecidos para operadores do Direito e para a população, até mesmo políticos e partidos políticos.

Instauração de ofício com base no Regimento Interno do STF

O inquérito foi instaurado com base no artigo 43 do Regimento Interno do STF, que versa que: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”.

As supostas “fake news“, que até hoje não foram apresentadas, não são infrações à lei penal nem ocorreram na sede do Tribunal. O argumento utilizado pelo excelentíssimo ministro Luís Roberto Barroso é que crimes ocorridos na internet estão em todo lugar. Portanto, um artigo do regimento que aponta qual a autoridade competente para investigar uma infração penal fisicamente dentro do tribunal é suficiente para ser utilizado para investigar palavrões na internet. É difícil encontrar amparo para tal sustentação, mas o silêncio na comunidade jurídica é um indício do motivo.

Luís Roberto Barroso, ministro do STF | Foto: Rosinei Coutinho/Ascom/TSE

Alguns juristas citam o parágrafo 1º do mesmo artigo, que exige que, nos demais casos, o presidente do Supremo deve “requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente”, deixando claro que a autoridade competente é um delegado, e não o próprio ministro do Supremo. Apesar de majoritária, tal interpretação simplesmente foi ignorada.

Na ocasião de sua abertura, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, manifestou-se contrariamente ao inquérito, solicitando seu engavetamento. Foi ignorada. Pedidos de participação do Ministério Público tampouco foram atendidos.

O ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp afirmou: “Esse inquérito nasceu, de certa forma, viciado. É a primeira vez que o STF, de ofício, abre um inquérito, designa o relator, não ouve o MPF e o inquérito prossegue. Isso foi inédito”.

Crime inexistente

Não existe a tipificação penal de um crime de “fake news”. O conceito é tão amplo que uma CPMI já foi instaurada para investigar as ditas “notícias falsas”, mas, apesar da torrefação de dinheiro público, a única fake news que foi vista foi de um dos denunciantes (o deputado e ex-ator pornô Alexandre Frota, que acusou o filósofo Olavo de Carvalho de escrever um tuíte contra Caetano Veloso, mas o tuíte era fake).

Notícias que já foram chamadas de fake news também foram amplamente refutadas. A origem laboratorial do coronavírus em Wuhan foi chamada de “teoria da conspiração” e fake news, inclusive por agências de checagem — antes de estamparem capas de revista, como a Superinteressante. A mesma Superinteressante que anteriormente havia publicado a reportagem “Sim, o coronavírus veio da natureza — e não de um laboratório”, com o subtítulo “Os boatos de que o vírus foi manipulado pela China não passam de uma mentira. E a ciência prova”.

Por sorte, a repórter Carolina Fioratti não foi incluída no inquérito — mas notícias verdadeiras publicadas na Gazeta do Povo, ou citando a aprovação de medicamentos pela norte-americana FDA, foram ensejo pela CPI da Covid para quebras de sigilo telefônico e telemático (aprovadas pelo Supremo), alegando serem uma “rede de desinformação”.

Políticos aproveitam constantemente o inquérito secreto para perseguir desafetos. O senador Fabiano Contarato (PT-ES), que será relator do novo Código Penal, e o deputado federal Fausto Pinato (PP-SP) já pediram ao STF para incluir a investigação de sites que fizeram críticas semelhantes à política chinesa, por exemplo. As peças também são coincidentemente muito parecidas.

A “honra” do Supremo

Como explica a jurista Thaméa Danelon, não sendo uma pessoa física, o Supremo não pode ter “honra” a ser atingida por animus diffamandi — não haveria “sentimentos” de um tribunal a serem preservados.

A sanha de punição ao crime de injúria, que, apesar de tipificado, quase nunca gera punição (ou qualquer xingamento na internet geraria seis meses de prisão), combina pouco com a linha garantista e antipunitivista de ministros como Barroso e Fachin, que são contra prisão para crimes com pouca violência.

Sorteios e indicações heterodoxas

A designação de juízes deve ocorrer por sorteio. Todavia, data maxima venia, o Inquérito 4.781, inaugurado por Toffoli, designou como relator Alexandre de Moraes por indicação — o que está contra o regulamento processual.

Ademais, em várias designações do caso, o próprio Alexandre de Moraes também exigiu que investigações policiais fossem conduzidas pela delegada Denisse Rosas Ribeiro, escolhida como preferida para conduzir investigações. Denisse Ribeiro também atua, por indicação do ministro Moraes, no inquérito dos atos antidemocráticos, o 4.879, que já deixou o jornalista Wellington Macedo preso por 42 dias sem saber até hoje por qual crime era investigado. Não há nenhuma previsão de que um ministro do STF possa interferir no trabalho da Polícia Federal a ponto de indicar qual delegado deve conduzir a investigação.

Não cabe esquecer que a maior celeuma entre Bolsonaro e o STF se deu justamente pela indicação de Alexandre Ramagem pelo presidente para a chefia da Polícia Federal. Pela lei, a escolha deve ser feita pelo presidente, mas o Supremo considerou que a indicação seria uma “interferência”.

A delegada Denisse Ribeiro | Foto: Reprodução

Denisse Rosas Ribeiro, curiosamente, já coordenou uma operação que teve como um dos alvos… o ministro Alexandre de Moraes. Podemos ler no jornal Folha de S.Paulo:

“A Operação Acrônimo, coordenada pela delegada federal Denisse Dias Rosas Ribeiro, apreendeu documentos que indicam o pagamento de pelo menos R$ 4 milhões de uma das empresas investigadas para o escritório de advocacia do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Segundo reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo na última sexta-feira (7/10), a JHSF Participações, de São Paulo, teria pago os valores entre 2010 e 2014.

O nome do ministro da Justiça, que na época não ocupava cargo público, foi encontrado em uma planilha no último dia 16 na mesa de um dos principais executivos da JHSF, empresa do setor imobiliário que está sendo investigada pela Acrônimo. A PF também encontrou na planilha os valores e as siglas PT e PSDB.

No mesmo mês, a defesa do proprietário da JHSF, José Auriemo Neto, informou à PF que a referência era mesmo ao ministro da Justiça”.

O que aconteceu para que Denisse Ribeiro, de repente, se tornasse a preferida de Alexandre de Moraes, e as investigações contra o então ministro simplesmente evaporassem, é um dos grandes golpes de sorte do STF.

O acesso aos autos — anulação do princípio da ampla defesa

No dia 27 de maio de 2020, um total de 29 mandados de busca e apreensão foi cumprido contra jornalistas, empresários, ativistas, humoristas e pessoas com trabalho de divulgar conteúdo político na internet. Acordados pela Polícia Federal em suas portas, foram-lhes tomados celulares, computadores e toda sorte de equipamentos eletrônicos.

O clima de terror no país, típico de regimes autoritários, foi instaurado justamente em nome da “democracia”. Completando-se dois anos da ação na semana passada, com ampla cobertura da mídia (inclusive do Jornal Nacional), os advogados dos investigados até agora não tiveram acesso à íntegra do processo, como exige a lei. Nem mesmo o equipamento eletrônico foi devolvido.

O advogado de algumas das vítimas das buscas e apreensões, dr. Emerson Grigollette, “comemorou” na semana passada os dois anos sem acesso aos laudos para a defesa de seus clientes com um bolo com vela preta.

Revista Oeste

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