Agentes acumulam funções, têm de sair da delegacia, fechar o prédio e enfrentar dificuldades diárias para concluir investigações
— A investigação é praticamente nula. Como vou investigar sozinha? Eu, basicamente, fico na delegacia registrando ocorrência.
O relato de uma policial em um município do Noroeste resume a realidade enfrentada em, pelo menos, 77 cidades gaúchas. Um levantamento do sindicato que representa escrivães, inspetores e investigadores da Polícia Civil do Rio Grande do Sul (Ugeirm) aponta que em quase um quarto dos 324 municípios onde existem delegacias há somente um policial civil. Uma situação que dificulta os agentes de exercerem sua principal função: investigar e solucionar crimes.
A falta de policiais reflete no cidadão. A comerciante Inete Zunkowski, 65 anos, de Barão de Cotegipe, poderia ter visto solucionado um assalto a sua residência em abril do ano passado. Ela assistia à TV com o marido, Valter, 70 anos, em casa, na área central, quando dois homens com os rostos cobertos surgiram no imóvel.
— Que isso, gurizada? — questionou Valter, pensando que fosse brincadeira.
Era um assalto. Os ladrões renderam o casal, que ficou duas horas preso em um quarto na mira de armas. Enquanto isso, reviravam a casa em busca de dinheiro e joias.
— Eram nove da noite. A gente nem tinha ligado alarme ainda – lembra.
Na fuga, os criminosos levaram uma Tucson preta, que pertencia aos Zunkowski. Os bandidos, assim como o veículo e as joias levadas, nunca foram encontrados. Pouco antes, os criminosos tinham tentado invadir a casa de outro morador, que percebeu a movimentação pelas câmeras e conseguiu se trancar a tempo.
— A nossa cidade não é mais uma cidade tranquila. Parece pacata, mas não é. Precisa ter mais policiamento — reclama a comerciante, que também teve a loja de roupas atacada.
Em 2017, as cidades que se encontram nessa situação tiveram, entre outros crimes, 29 homicídios, dois latrocínios, 3,5 mil furtos, 349 assaltos, 1.082 ameaças contra mulheres, 54 estupros e 506 abigeatos (furto de animais), segundo dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado.
Para Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, sociólogo, professor da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a falta de efetivo nas delegacias é um dos fatores que contribuem para o crime porque inviabiliza as apurações:
— A investigação é o caminho para a responsabilização dos acusados. Mas o que temos vivenciado no Brasil é um sucateamento das polícias investigativas. A presença das polícias militares gera sensação de segurança e, por isso, acabam recebendo mais recurso. É necessário ter equilíbrio maior entre essas estruturas.
Segundo o chefe da Polícia Civil, Emerson Wendt, 75 delegacias têm somente um policial civil lotado. Ele reconhece que alguns servidores podem estar em licença. Para o delegado, o número mínimo ideal para manter uma DP é de cinco policiais, que desempenhem diferentes funções como investigação, cartório e atendimento ao público, entre outras.
Wendt afirma que o retorno de servidores aposentados para realizarem atividades administrativas, medida que faz parte do pacote da segurança do governo, poderá beneficiar essas cidades.
Segundo ele, o número, no ano passado, era de 90 delegacias, mas foi reduzido com formação de novos policiais:– A polícia procurou não deixar nenhuma cidade sem policial, e onde a criminalidade exigia, colocar um a mais. Tem de fazer o planejamento. Quando dá um caso mais grave, o primeiro aporte é a delegacia de polícia regional.
Economia anual de R$ 6 milhões
Wendt diz que um levantamento da Polícia Civil aponta que 56 DPs poderiam ser fechadas, por não terem alta incidência de criminalidade ou por estarem a até 20 quilômetros de outra.
— Se fechasse essas delegacias teria economia anual de R$ 6 milhões. Mas nenhuma cidade quer perder uma DP, mesmo que com um servidor.
O presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), Salmo Dias, afirma que as cidades têm tentado auxiliar para reduzir os impactos da falta de efetivo, mas relata situação de insegurança:
— O sentimento é de pavor. O crime migrou dos grandes centros para o Interior e o Estado não consegue repor o efetivo. É uma certeza absoluta que o bandido tem de que vai atacar uma cidade e vai encontrar às vezes um ou nenhum policial.
Sentimento é de pavor.
SALMO DIAS
Presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs)
Coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública, o promotor Luciano Vaccaro, afirma que a situação preocupa o Ministério Público, já que há recrudescimento da criminalidade.
— Isso pode comprometer o trabalho? Pode. Evidentemente, que é uma preocupação da sociedade e do MP. Essa é uma carência geral do serviço público, em todo o país.
O promotor ainda afirma que considera correta a decisão da polícia de concentrar servidores nas cidades em que há maior incidência de crimes:
— É necessário que cada delegacia tenha contingente de recursos humanos que possa desempenhar a contento a atividade da polícia judiciária. O que temos hoje não é a situação ideal. Mas apesar de toda essa carência de servidores, há esforço grande de toda a Polícia Civil no combate à criminalidade.
Zero Hora
“Hoje, tu só registra, não investiga”, diz agente da Polícia Civil
Agentes acumulam funções que deveriam ser desempenhadas por pelo menos mais quatro servidores
“Tudo” é a palavra mais usada pelos policiais para descrever o que fica prejudicado no serviço do policial que precisa trabalhar sozinho – a reportagem telefonou para 77 delegacias. Na região Norte, uma agente tenta se desdobrar ao acumular as funções que deveriam ser desempenhadas por pelo menos mais quatro servidores.
— Estou concentrada fazendo um procedimento, daqui a pouco chega uma pessoa para fazer um registro. Tenho de largar tudo. Se preciso intimar alguém, tento ligar, a pessoa não atende. Tenho de largar tudo na DP, pegar viatura e ir atrás da pessoa.
Um policial da mesma região reconhece que investigar tem sido tarefa difícil:
— Hoje, tu só registra, não investiga. Só quando acontece algo mais grave. Os outros casos, tu vai empurrando como dá. Com certeza, se tivesse mais gente, conseguiríamos atender melhor às pessoas.
— Se der algo na cidade hoje, fujo. Estou completamente sozinho. É um caos. É a mesma coisa se não tivesse uma delegacia. A gente sabe de tudo que está acontecendo, quem são as pessoas que furtam, traficam, mas não tem como investigar. Não é o tipo de atendimento que gostaríamos de dar à população – complementa um agente, que afirma ter cerca de 700 procedimentos instaurados por ano na delegacia.
Para a Ugeirm, a situação, além de prejudicar o atendimento à população, coloca servidores em risco.
— Uma delegacia com um policial não existe. Como um policial vai dar conta de todo o serviço e investigar? E quando vai fazer uma prisão? Faz o quê? O que mantém a coisa funcionando no Interior é a união entre a Civil e a Brigada. Somam os poucos efetivos e tentam ajudar um ao outro – afirma o presidente da entidade, Isaac Ortiz.
Reestruturar a polícia
O presidente da Famurs, Salmo Dias, afirma que os municípios têm tentado contornar a falta de policiais com o investimento nas guardas municipais e na instalação de equipamentos como câmeras de monitoramento:
— Os municípios estão fazendo o que é possível. Mas nada substitui a presença humana do brigadiano, do policial civil. Tem municípios com um brigadiano e em mais de 20% das cidades que têm delegacias há somente um policial. Como dizer para um policial desses enfrentar o cara com uma metralhadora ou um fuzil?
Doutor em sociologia e diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS, o professor José Vicente Tavares dos Santos entende que concentrar os esforços de investigação em uma delegacia regional e manter as locais como pontos de registro dos casos pode ser alternativa para driblar a falta de servidores.
— Tudo depende do perfil da região, da incidência de crime. Mas o que garante a eficácia não é a presença, e sim uma polícia que investigue — analisa.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da PUCRS, concorda que é necessário investir na estrutura e na contratação de servidores, mas avalia que o caminho para o combate à criminalidade vai além:
— Acredito que seria preciso fazer a rediscussão do próprio modelo de polícia.
Azevedo defende que seja repensada no país a estrutura da corporação para que possa ocorrer um ciclo completo do policiamento, como o adotado no Chile, onde os carabineiros são responsáveis pela polícia ostensiva, perícia criminal e pela investigação.
— Se discute que as polícias militares pudessem passar a ter competência para trabalho de polícia investigativa pelo menos para os crimes mais comuns. Com isso, a polícia investigativa pode se especializar naqueles que envolvem trabalho mais aprofundado.
Para que isso ocorra, Azevedo afirma que é necessário estreitamento na relação entre as polícias e o MP:
— No Brasil, esse debate está bastante atrasado. O país vive uma crise desde os anos 90, mas adota soluções paliativas e nunca se mexe nessa estrutura.
“Tô apavorada”, diz jovem policial
Com poucos meses de formação, uma policial no norte do Estado vive realidade bem diferente da que imaginou durante o curso. Sozinha em uma DP, registra as ocorrências, elabora os inquéritos, cumpre as intimações e os mandados de busca, além do serviço administrativo.
— Deus me livre, tô apavorada. A gente saiu direto da academia (Academia de Polícia) para isso aqui. Imagina, que experiência que a gente tem de polícia?
A agente não é a única entre os novos que enfrenta o mesmo desafio.
— Me sinto insegura. Até por ser nova, a gente não sabe direito como agir — conta outra policial também formada há poucos meses.
Quando está em dúvida, pede auxílio aos colegas de uma cidade vizinha. Também recebe apoio da BM, mas os policiais precisam cobrir o pouco efetivo em outro município próxima.
— Eles nem sempre estão aqui. Mas quando estão, dão uma passada e qualquer coisa ligo para eles.
— Durante a formação, a gente aprende que não deve nem andar de viatura sozinha. Aqui é o que a se faz diariamente — complementa outra policial em uma cidade próxima.
O chefe da Polícia Civil, Emerson Wendt, diz que os policiais foram orientados a permanecer de 15 a 30 dias acompanhando os novos agentes, antes de serem removidos para outras delegacias.
— Esse policial tem um delegado para quem ele deve se reportar e buscar orientação no trabalho — explica.
Vizinhos atendem quem procura delegacia fechada quando a única policial da cidade entra em férias
A DP é uma das 77 unidades no Estado onde só há um servidor público trabalhando
— Vieram para a delegacia? — indaga dona Onira Morandi, 79 anos, ao ver o carro da reportagem estacionar em frente ao prédio da Delegacia de Maximiliano de Almeida, bem ao lado de sua casa. A DP é uma das 77 unidades no Estado onde só há um policial trabalhando.
Curiosa com a movimentação, assim como outros moradores dos arredores, Onira caminha com a cuia na mão. Quando busca o nome no crachá, sorri:
Durante todo o mês de fevereiro, quando a servidora está de férias e precisa ser substituída, o atendimento só ocorre nas terças e quintas-feiras à tarde. É o que avisa o cartaz colado na porta, atrás de uma grade, uma corrente e um cadeado. No restante do tempo, a DP permanece fechada e a viatura pode ser vista estacionada na garagem. Seu Ferdinando, 84 anos, marido de Onira há mais de 60 anos, como ela frisa, também se aproxima bem-humorado.
— Quase todo dia vem um aqui querer procurar papel, documento. Esses dias um refém queria que eu atendesse. Acho que vou assumir a delegacia de vez — diverte-se.
Do outro lado do prédio, um morador faz graça ao ver o tripé da câmera na calçada:
— Estão medindo a distância que o policial está daqui?
“Em caso de urgência, procure a BM”
Mas, para quem precisa do atendimento, as portas fechadas não são encaradas com bom humor. Olga Barbosa, 62 anos, encontrou mais uma vez o prédio fechado ao tentar procurar informações sobre o andamento de um registro. No ano passado, após mais um ataque a bancos na cidade, participou de um protesto pedindo mais segurança. Sem resultados, está indignada:
— Não é possível a cidade ter atendimento só duas vezes por semana. É como uma cidade sem lei.
A realidade de Maximiliano é a mesma de outras cidades. Durante as férias dos colegas, policiais relatam que é comum ter de se dividir entre mais de uma delegacia. Quando precisam sair, tentam improvisar. “Já volto”, avisa a plaquinha que uma agente do Noroeste coloca na porta. “Em caso de urgência, procure a BM”, diz outro policial.
— Aqui não tem estagiário, não tem nada. Deixo um aviso na porta e meu telefone. As pessoas vêm de outros municípios e não tem ninguém. Dão com a cara na porta. Como vão entender? – conta um agente.
Em uma DP da Serra, quem atende o telefone é a funcionária da limpeza.
— Ele (policial) é sozinho. Está em diligência. Quando sai, atendo o telefone — disse à reportagem.