Em uma década, número disparou de 1,7 mil para mais de 5,2 mil
As 5.228 armas de fogo registradas no Rio Grande do Sul em 2019 mantiveram o Estado entre os mais armamentistas do país, atrás apenas de Minas Gerais em números absolutos. A soma, de janeiro a novembro do ano passado, supera o mesmo período de 2018 em 5,64% e estabelece o novo recorde de cadastramentos nos 11 primeiros meses de um só ano. Embora essas autorizações concedidas pela Polícia Federal tenham aumentado, o RS perdeu o topo do ranking, sustentado desde 2014.
Quando os registros são proporcionalmente associados aos habitantes, o Estado ocupa a quinta posição, mas segue à frente de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Paraná, todos mais populosos. Tamanha devoção ao armamentismo deve-se, em parte, a períodos beligerantes, quando batalhas campais — como na Guerra do Paraguai e na Revolução Farroupilha — forjaram a cultura gaúcha.
— É um povo aguerrido, defensor da sua propriedade — sintetiza o delegado Emerson Wendt, ex-chefe de Polícia Civil.
Prova disso é que em 23 de outubro de 2005, quando o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento foi refutado pelos eleitores, 87% dos gaúchos disseram “não” à proibição do comércio de armas no Brasil. Foi a mais expressiva rejeição no país e com o maior percentual de comparecimento às urnas: 83%. Boa parte dos votos veio de fora dos grandes centros, onde moram 1,6 milhão de pessoas — a oitava maior população rural do Brasil.
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro fez afago nesses moradores ao permitir que usem armas de fogo em toda a extensão de suas propriedades, mesmo tendo apenas direito à posse. Antes, só era permitido na sede.
O efetivo da Brigada Militar vem diminuindo ano após ano. Isso é compensado pela procura por arma para proteção pessoal.
ALBERTO KOPITTKE
Diretor-executivo do Instituto Cidade Segura
— Essa votação de 2005 indica que, naquele momento, havia tendência de que os gaúchos, em sua grande maioria, concordavam com leis mais flexíveis em relação a uso de arma de fogo — observa Letícia Maria Schabbach, professora de Sociologia da UFRGS e integrante do grupo de pesquisa Violência e Cidadania.
Alberto Kopittke, diretor-executivo do Instituto Cidade Segura, pondera que essa precaução com bens patrimoniais e proteção pessoal arraigada no cotidiano tem como gênese a sensação de insegurança, seja histórica, herdada das guerrilhas, ou contemporânea.
— O efetivo da Brigada Militar vem diminuindo ano após ano. Isso é compensado pela procura por arma para proteção pessoal — argumenta Kopittke, que é doutor em Políticas Públicas pela UFRGS e mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.
Abrigar uma das principais fabricantes de armas do país e ter território fronteiriço com Uruguai, Argentina e próximo do Paraguai também são vistos como facilitadores para a compra legal e ilegal de armamento.
Campanha
Cumprida já no primeiro ano de governo, a promessa de facilitar acesso às armas foi tema central da campanha que elegeu Bolsonaro. O assunto mereceu oito decretos que ampliam a posse e o porte e relaxam controles estabelecidos pelo Estatuto do Desarmamento. Quatro foram revogados após contestações do Congresso e do Ministério Público Federal.
— Os números de 2019 são frutos dessa sinalização do governo em apoio à aquisição de arma e do estímulo ao uso — observa Julita Lemgruber, socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro.
O culto institucionalizado às armas contribuiu, acreditam Wendt, Kopittke, Letícia e Julita, para o crescimento dos registros de armas no país. De janeiro a novembro de 2019, o aumento nos 26 Estados e Distrito Federal foi de 28,10% em relação ao mesmo período do ano passado, chegando a 44.181 novas armas – recorde nos últimos 10 anos. O levantamento diz respeito aos registros feitos por pessoas físicas, excluindo, portanto, aquisições por órgãos públicos, empresas de segurança e também os colecionadores, atiradores e caçadores.
Presidente da Associação Brasileira de Atiradores Civis (Abate) e despachante especializado em documentos relacionados ao tema, Henrique Adasz associa a redução dos crimes violentos à popularização das armas. Enquanto os registros cresceram 28%, os assassinatos diminuíram 22% nos primeiros nove meses do ano passado no país em comparação com o mesmo período de 2018, conforme levantamento do portal G1. No RS, a redução de homicídios e latrocínios foi de 24% entre janeiro e dezembro, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP).
— A conta é simples: quanto mais armas legais nas mãos de pessoas boas, menor será a criminalidade. O bandido, apesar de ser bandido, tem medo de morrer. E uma população mais armada oferece risco à “profissão” do bandido — avalia o presidente da Abate.
Julita Lemgruber, socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, considera incorreto atrelar a queda de índices de criminalidade ao aumento dos registros de armas. A especialista lembra que a redução da violência é anterior ao governo Bolsonaro e acontece por causa de medidas tomadas nos Estados. A diminuição dos assassinatos em 2018 foi de 10,48% no país e de 20,94% no RS na comparação com 2017, mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
— Este incentivo ao uso da arma de fogo para prevenção de crimes é postura que contraria a quase totalidade dos estudos científicos. Quanto maior a quantidade de armas em momentos de conflitos, maior é a probabilidade que esse confronto acabe em morte. A arma de fogo não previne o crime, aumenta a violência — complementa Letícia Maria Schabbach, do grupo de pesquisa Violência e Cidadania da UFGRS.
Já para alta dos registros de armas no Rio Grande do Sul e no país, Adasz credita à visibilidade de que o tema ganhou com os decretos editados por Bolsonaro e, consequentemente, à presença do assunto na imprensa.
Miguel Malta Moyses, administrador de empresas de 32 anos, acompanhou os debates sobre o tema, mas já estava decidido a se armar. No fim de 2019, comprou uma pistola 838 semiautomática. A arma está no estande de tiro aguardando as liberações que o permitirão levá-la para casa.
— Minha esposa trabalha em áreas com alto índice de criminalidade e faz plantões noturnos. É um alvo fácil. Ideia da arma era para poder protegê-la também.
Como só tem direito a posse, não poderá carregar a pistola na cintura. Ele pretende solicitar o porte daqui alguns anos. Enquanto isso, contenta-se por que conseguirá aumentar, na sua opinião, a segurança em casa.
— É para defesa pessoal. Nossa rua é escura, deserta. Ter arma em casa me dará mais segurança. É um meio de poder me defender. E quem estuda o tema sabe que ter uma arma requer responsabilidade e como é demorado conseguir autorização da Polícia Federal. Só diante de uma psicóloga, fiquei duas horas fazendo testes e análises — comenta.
Algumas mudanças promovidas por Bolsonaro
A potência das armas classificadas como de uso permitido quadruplicou, e pistolas como a 9mm ganharam status de uso permitido, passível de aquisição pelo cidadão comum.
O registro de posse passou a valer por 10 anos e não mais por cinco anos, e policiais foram dispensados de exames para renovação da autorização de armas pessoais.
Passou a ser possível comprar até quatro armas de uso permitido. O limite pode ser flexibilizado caso o comprador comprove a necessidade de adquirir mais. Um dos argumentos pode ser o fato de ter mais de quatro propriedades rurais. Antes, eram permitidas duas.
Os requisitos
- Ter 25 anos ou mais.
- Ter residência fixa.
- Não ter antecedentes criminais.
- Preencher o requerimento de aquisição disponível no site da Polícia Federal.
- Imprimir a Guia de Recolhimento da União – GRU e o requerimento de aquisição.
- Pagar os R$ 88 da GRU.
- Apresentar na Polícia Federal documentos como foto 3×4, original e cópia do RG e do CPF, documentos que comprovem ocupação lícita, aptidão psicológica e capacidade técnica para o manuseio de arma de fogo.
- Acompanhar o andamento do processo no site da Polícia Federal.
- Deferido o requerimento, a autorização de aquisição poderá ser impressa pelo site da Polícia Federal. Validade é de 90 dias.
- Com a autorização de aquisição de arma de fogo, o interessado terá de ir à loja de sua preferência fazer a compra.
- O interessado terá, então, 15 dias para pedir o registro de arma de fogo preenchendo requerimento no site da Polícia Federal.
- Após estes trâmites poderão ser emitidos o Certificado de Registro de Arma de Fogo e a guia de trânsito, documentos que autorizam retirada da arma no estabelecimento comercial.
Entenda a diferença
O que é posse
Quem tem essa autorização deve manter o armamento no interior de sua residência ou no seu local de trabalho. Nas áreas rurais, é permitido circular por toda a propriedade. As pessoas que têm direito apenas à posse de arma de fogo só podem transportá-la em situações especiais, para ser levada de um local para outro. Para isso, é necessária autorização provisória e específica emitida pela Polícia Federal chamada guia de trânsito.
O que é porte
Quem tem porte de arma de fogo pode circular com ela na rua. Conforme a legislação atual, é “proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria”. É o caso, por exemplo, de integrantes das Forças Armadas, das polícias, do Corpo de Bombeiros Militares e dos funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores.