Em 15 meses, a covid-19 matou no mundo 2,7 milhões de pessoas; diante desse cenário, convém conferir e parar para pensar se todas as coisas boas que aconteceram no período serão capazes de suplantar tantas coisas ruins.
Quando a casa está pegando fogo, ninguém consegue ver coisas boas que possam estar sucedendo em volta. É o que acontece também nesta pandemia. Mas será que essas coisas boas serão capazes de suplantar tantas coisas ruins? Convém conferir e parar para pensar.
Entre as coisas boas que vêm acontecendo no mundo podemos eleger pelo menos três. Nunca tantas vacinas foram desenvolvidas tão rapidamente ao mesmo tempo. E há outras em andamento. E isso merece comemoração.
Também em nenhuma crise anterior tantos governos e tantos bancos centrais despejaram tanto dinheiro para reverter a paradeira econômica e o desemprego. Os Estados Unidos, por exemplo, aprovaram um pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão de socorro emergencial à população e o governo Joe Biden prepara outro, de US$ 3 trilhões, destinado a investimentos em infraestrutura e em produção de energia limpa, com ideia de, em alguma medida, repetir o New Deal de Franklin Roosevelt, nos anos 30.
Em consequência desses dois fatores, a recuperação da economia mundial é inegável. A principal usina do mundo, os Estados Unidos, deve crescer neste ano 6,5%; a China, 7,8%; a zona do euro, 3,9% – para ficar com as projeções da OCDE.
Mas não dá para parar apenas nesses sucessos; é preciso visão mais abrangente. A vacinação continua muito lenta e é desigual. Embora o presidente Biden garanta que, até o fim de abril, terão sido aplicados 200 milhões de doses e outros países, como Israel, tenham sido muito eficientes na imunização de sua população, não dá para omitir que serão necessários pelo menos 9 bilhões de doses para vacinar dois terços dos 6 bilhões de adultos que cobrem o planeta. E, no entanto, até agora não foram produzidos mais que 500 milhões, como observa Martin Wolf na sua coluna semanal do Financial Times.
A velocidade desigual da imunização fica clara a partir dos números fornecidos pela plataforma Our World in Data, ligada à Universidade de Oxford, que acompanha o ritmo da vacinação por doses aplicadas diariamente em relação à população. Uruguai e Chile estão entre os países que mais têm imunizado por esse critério: 1,11 e 1,04 dose aplicada por dia a cada 100 habitantes, respectivamente.
Destacam-se também os Estados Unidos, com 0,86; e Israel, 0,50. Já o Brasil, a passos de tartaruga, tem aplicado 0,29 vacina por dia a cada 100 habitantes. Nível semelhante ao da Austrália 0,32; e Peru, 0,31. (Veja o gráfico, para uma ideia mais abrangente.) Em 15 meses, a covid-19 matou no mundo 2,7 milhões de pessoas.
Apontar para esses desequilíbrios não é apenas questão de fazer contraponto às boas notícias. A pandemia não terá ido embora enquanto não for extirpada em todo o planeta. Se meia dúzia de países continuar mal curada, o vírus terá campo para mutações, que seguirão contaminando o resto do mundo. Este é fator em benefício próprio que deveria empurrar as grandes potências para ajudar a erradicar a covid-19 nos países mais pobres. Mas, até agora, vem prevalecendo a lei darwiniana do cada um por si e a de que se danem os outros.
Mais ainda, essas diferenças no processo de imunização tendem a produzir mais desigualdades. O número de pessoas que descambaram para a pobreza extrema está estimado em torno de 115 milhões, podendo chegar a 150 milhões em 2021, como mostram estimativas do Banco Mundial.
E há situações que até o momento não têm estatística e talvez nunca a terão. Quantos trabalhadores perderam o emprego e talvez nunca recuperem o poder aquisitivo de antes da pandemia? Quantas carreiras de jovens não foram truncadas? Quantas crianças já não perderam um ano de escolarização e certamente perderão mais? Um dia aparecerão narradores capazes de dar uma ideia melhor de tantas perdas e de tantas vidas definhadas.
A ficha do Brasil, mais do que conhecida, não é para ser repetida neste espaço. Basta lembrar aqui o tema desta Coluna na quinta-feira: o país do futuro está ficando para trás. Do nosso ponto de vista, é mais do que calamidade.
Celso Ming, O Estado de S.Paulo