Ativista presa e muitos outros militantes apoiadores do presidente Jair Bolsonaro exibem símbolos ligados ao país; bandeira de grupo meonazista ucraniano foi motivo de briga na Avenida Paulista, em São Paulo.
Bandeira vermelho e negra com brasão ucraniano é considerada um símbolo ligado ao neonazismo
Foto: Reprodução/Twitter / BBC News Brasil
Apesar de nunca ter deixado claro quando este treinamento teria ocorrido, ou por quem teria sido instruída, a ativista estava ecoando um tema que aparece frequentemente em discursos e postagens de rede social da militância favorável ao presidente Jair Bolsonaro: o fascínio pela Ucrânia e até por grupos neonazistas do país do leste europeu.
Em redes sociais e discursos feitos durante protestos, Winter e outros ativistas da direita brasileira falavam em “ucranizar o Brasil” e a bandeira ucraniana foi adotada como “adereço” ao lado dos nomes de usuários em plataformas como o Twitter.
Mas, afinal, como a Ucrânia se tornou esse objeto de fascínio para o bolsonarismo?
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O contexto político
Parte da explicação, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, tem relação com o histórico recente de radicalização e rupturas políticas na Ucrânia.
A Ucrânia é um vasto país do leste europeu, com uma grande fronteira com a Rússia e uma relação histórica conturbada com o vizinho. Russos e ucranianos eram um povo só até o século 9, explica o professor de história da USP Angelo Segrillo, especialista em história da Rússia. Ao longo dos séculos, a região da Ucrânia ficou retalhada entre diversos impérios: foi dominado inclusive pelo Império Russo, e no século 20 fez parte da União Soviética.
“A Ucrânia se tornou um Estado independente nos anos 1992, com o fim da URSS”, explica Segrilo.
Na história recente, o país foi palco de violentos confrontos em 2014, primeiro entre nacionalistas e o governo pró-Rússia, e depois entre separatistas e um novo governo nacionalista.
As desavenças internas começaram em dezembro de 2013, com intensas manifestações pelo país quando o então presidente, Viktor Yanukovych, sob pressão do presidente russo, Vladmir Putin, anunciou que não assinaria um acordo com a União Europeia, que poderia, no futuro, levar à entrada do país no bloco.
Os manifestantes pró-Europa chegaram a ocupar prédios do governo e entrar em confrontos com forças de segurança, com um saldo de dezenas de mortos e milhares de feridos. Em meio ao clima de insurgência popular pelo país, presidente pró-Rússia foi derrubado. O Parlamento votou por uma eleição adiantada, e o candidato pró-europa Petro Poroshenko venceu em primeiro turno.
“Houve um processo de ruptura com o sistema político nacional”, explica Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora. “Esse momento de insurgência e instabilidade do país potencializou a organização e o fortalecimento de grupos de extrema-direita nacionalista”, explica Caldeira.
“Isso não quer dizer que o processo que ocorreu na Ucrânia tenha sido um processo neofascista, mas que o momento de radicalização da agenda política do país permitiu que grupos mais radicais se aproximassem do mainstream.”
Após o colapso do governo pró-Rússia, a Crimeia, que tem uma grande população de origem russa, declarou formalmente “independência” e desejo de se juntar à Federação Russa (nome oficial da Rússia). Após um referendo não reconhecido pelo governo ucraniano, o país vizinho enviou tropas e rapidamente assumiu o controle da Crimeia, anexando a região à Rússia.
Conflitos separatistas surgiram em outras regiões, com milícias de homens armados apoiando os separatistas pró-Rússia ocupando prédios do governo ucraniano. Militares russos assumiram envolvimento com as milícias, mas o país nunca admitiu formalmente a interferência no vizinho. “Houve uma mistura de tropas ucranianas pró-Rússia e uma infiltração de soldados russos”, explica Segrillo.
Em 2015 o governo conseguiu negociar um cessar-fogo, com condições como a saída de combatentes estrangeiros do território ucraniano, mas as regiões insurgentes não foram retomadas. E a Criméia continuou anexada à Rússia.
‘Ucranizar o Brasil‘
Mas o que isso tudo tem a ver com o Brasil? E porque falar da Ucrânia, quando grupos nacionalistas estão ganhando força em diversos lugares do mundo?
Segundo Caldeira Neto, que também é membro do Observatório da Extrema Direita, a Ucrânia é tomada como exemplo pela direita brasileira pela forma como extrema-direita conseguiu se organizar e agir no país.
“Há dois entendimentos possíveis, um mais amplo, que faz referência à esse momento de ruptura com o status quo político”, diz Caldeira Neto. “Há outras leituras mais particulares, mais associadas aos grupos neofacistas, cuja referência não está necessariamente nessa ruptura, mas em um desejo de reprodução de ideias, táticas e estratégias usadas no país europeu.”
“É uma dinâmica de buscar experiências que deram certo para a direita fora do Brasil, e caso da Ucrânia teve um impacto midiático muito forte”, diz ele.
Quando fala em “ucranizar o Brasil”, a direita brasileira está fazendo referência direta aos episódios em que grupos armados invadiram prédios do governo no país europeu.
“Há vários exemplos de ações de desobediência civil nos últimos cem anos, mas talvez o mais interessante de comparar com nossa situação seja o protesto do povo ucraniano nos 93 dias do inverno entre 2013 e 2014 que ficou conhecido como Euromaidan e levou à renúncia do presidente Viktor Yanukovych”, diz um texto com o título “O Dever de Ucranizar”, no site de direita Vida Destra, do advogado Fábio Talhari.
Sara Winter e os radicais
Antes de se tornar bolsonarista, Sara fez parte por alguns meses do grupo feminista Femen, de origem ucraniana, do qual também foi expulsa, segundo disse na época uma das dirigentes do movimento, Alexandra Shevchenko. Na época, ela foi presa mais de 20 vezes e viajou sozinha para a Ucrânia.
A antropóloga Adriana Dias, uma das principais especialistas em neonazismo do Brasil, acompanha a movimentação de Sara desde antes do Femen e diz que ela já era ligada ao neonazismo antes de entrar no grupo feminista. “Ela atuava com o movimento neonazista de São Carlos”, diz Dias, “produzindo fotografias e entrevistas para uma fanzine nazista”. Quando questionada diretamente sobre o assunto, Sara sempre nega qualquer laço com o neonazismo.
Mas Sara Winter não é a única militante de direita radical brasileira ligada à nacionalistas ucranianos.
Uma investigação da polícia civil do Rio Grande do Sul iniciada em 2017 encontrou laços entre grupos neonazistas brasileiros e extremistas ucranianos.
A investigação descobriu que brasileiros estavam sendo recrutados para lutar contra rebeldes pró-Rússia na Ucrânia — se de fato os extremistas brasileiros chegaram a adquirir experiência de combate no exterior, no entanto, não é claro. O delegado Paulo César Jardim diz à BBC News Brasil que não pode dar mais informações sobre a investigação, que continua em andamento.
Nostalgia nacionalista
Um dos fatores que causa mais polêmica envolvendo as referências à Ucrânia é justamente o fato de que muitas delas são vistas como associadas ao neonazismo, segundo Dias e Caldeira.
Um exemplo é o caso de uma bandeira que apareceu em diversos dos protestos a favor do presidente Bolsonaro em São Paulo.
A presença de uma bandeira vermelho e negra com um brasão em forma de tridente, símbolo tradicional da Ucrânia, chamou atenção por ser associada a a grupos neonazistas do país europeu.
A bandeira é associada ao partido e grupo paramilitar de extrema-direita Pravy Sektor, ultranacionalista e associado ao neofascismo.
Os relatos sobre o símbolo na imprensa levaram a Embaixada da Ucrânia e emitir nota dizendo que “para milhões de ucranianos… a bandeira rubro-negra simboliza a nossa terra e o sangue de nossos heróis derramado por Liberdade, Independência e Soberania da Ucrânia”. A representação ucraniana enfatiza que seu uso “não tem nada a ver com o movimento neonazista”.
Ainda segundo a Embaixada, “a bandeira histórica e o brasão da Ucrânia” foram usados desde o século 16 “por cossacos ucranianos nas lutas contra invasores estrangeiros, e por isso, durante o século passado e no começo do século 21, virou o símbolo de luta dos ucranianos contra ocupação, chovinismo e imperialismo russos”.
Estudiosos de ideologias de extrema direita, no entanto, explicam que, embora sejam símbolos nacionais na origem, eles foram apropriados por grupos neonazistas e têm hoje esse significado internacionalmente. “Podem negar, mas isso não muda a simbologia. É um absurdo achar que esse símbolo seja neutro”, diz Adriana Dias. “O uso disso por brasileiros é para ser visto com grande preocupação.”
Segrillo explica que durante a Segunda Guerra Mundial houve um movimento de um grupo ucraniano que, para se libertar da União Soviética, se aliou ao nazismo. E é esse grupo que é lembrado com nostalgia hoje por grupos ultranacionalistas, diz Adriana Dias.
“O Pravy Sektor, especificamente, mas na Ucrânia em geral hoje, está havendo uma relembrança das pessoas que lutaram ao lado de Hitler, portanto contra os judeus, negros e gays, por uma superioridade étnica”, explica Adriana Dias. “Hitler, quando tomou a Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial, viu que podia contar com certas forças nacionalistas na Ucrânia.”
Esses grupos colaboracionistas que são relembrados com nostalgia pela extrema-direita ucraniana. “É um tipo de nacionalismo que esteve muito presente no fascismo, no nazismo, no franquismo, baseado nesse ideário de uma grande nação.”
“Embora a cooperação internacional de grupos nacionalistas não seja ampla, até por conta de sua natureza, a circulação dessas ideias acontece internacionalmente”, explica Caldeira Neto.
“São ideias políticas que circulam, os intelectuais leem as obras uns dos outros e tentam adaptar as ideias, as táticas e estratégias para o Brasil”, explica.
Ao importar esse símbolo para o Brasil, diz a antropóloga Adriana Dias, grupos de direita nacionais querem trazer a ideia de que há um só Brasil a ser construído, um só povo brasileiro. “Estão tentando recriar esse modelo nacionalista”, diz ela, e veem com admiração a experiência recente da direita ucraniana nesse sentido.
Esse ideal de uma só nação, afirma Dias, “é uma negação de toda etnicidade brasileira, quando na verdade nossa riqueza está na nossa diversidade”, diz ela. Dias cita como exemplo a fala do ministro da Educação, Abraham Weintraub, em uma reunião ministerial, onde ele falou que “odeia a expressão povos indígenas” e “quilombolas”, pois “todos são povo brasileiro”.
Dias afirma que no Brasil, especificamente, há uma tendência de grupos se importarem com neonazismo de outros lugares.
“Nos Estados Unidos você não vê muitos grupos de nacionalismo de outros lugares. Você não vê nazismo dos Estados Unidos na Rússia. Mas alguns lugares, como o Brasil e na América Latina em geral, importam símbolos neonazistas”, diz ela.
“Nós importamos símbolos de neonazismo russo, ucraniano, estadunidense, espanhol, inglês. Eu costumo brincar que até o neonazismo brasileiro é miscigenado”, diz ela.
Símbolos e negação
Apesar de usarem simbologia fortemente considerada ligada ao nazismo, quando questionados diretamente, militantes pró-bolsonaristas negam qualquer laço ou referência com o nazismo.
Um dos militantes que levaram o símbolo aos protestos, por exemplo, disse ao jornal Folha de S.Paulo que não tinha “nada de nazista” no símbolo.
“É uma bandeira antiga, usada desde o século 16. O preto simboliza a terra ucraniana, que é muito fértil, e o vermelho é o sangue dos heróis. Não tem nada de nazista”, disse Alex Silva ao jornal. Silva diz morar no país Europeu desde 2014, onde trabalha em uma academia de tiro e táticas militares.
Adriana Dias afirma que a apropriação de símbolos nacionais tradicionais é comum em grupos de direita nacionalistas — e faz um paralelo entre o uso que a direita ucraniana faz de símbolos ucranianos tradicionais e o uso da bandeira do Brasil pela direita brasileira.
“A direita no mundo tem feito isso, de usar os símbolos da nação como se fossem dela”, diz. “A ditadura militar já fazia isso.”
O uso de símbolos nazistas — e depois a negação da referência — já aconteceu até dentro do governo brasileiro, lembra.
Em janeiro, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim, fez um discurso com as mesmas palavras de uma fala de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Depois Alvim negou a referência, que incluía som do compositor favorito de Hitler ao fundo. Alvim acabou demitido e substituído por Regina Duarte, que também deixou o cargo no mês passado.
Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro citou nas redes sociais uma frase do ditador fascista Benito Mussolini, chamando-o de “o velho italiano”.
“O governo joga as referências ao vento, sai distribuindo símbolos a torto e a direito, e depois basta que ele negue. Ele sempre nega. Essa estrutura é uma estratégia da direita que é muito parecida com a usada pelo Steve Bannon (ex-estrategista político de Trump)”, afirma Dias.
“Você lê o livro do Bannon e ele fala que você tem que jogar muitos símbolos, para confundir as pessoas, e depois negar tudo. E continuar criando essa confusão para as pessoas não verem o que está acontecendo”, diz.
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