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O que acontece quando a Justiça legisla?

As  ações de gênero para o financiamento eleitoral, o entendimento de que o tempo de rádio e televisão deve acompanhar a porcentagem de candidaturas por gênero, a determinação da distribuição proporcional do financiamento para candidaturas negras e brancas. Todas essas medidas possuem dois importantes pontos em comum. Em primeiro lugar, são ações que têm como objetivo corrigir as desigualdades de gênero e raça na competição eleitoral. Em segundo lugar, são todas decisões aplicadas pelo poder Judiciário, em resposta a consultas feitas por membros do Legislativo. Em outras palavras, são medidas de extrema importância na busca pela igualdade, mas que, diferente das cotas de gênero para candidaturas, não são leis.

Mais do que avaliarmos se existe algum tipo de sobreposição de poderes, cabe-nos questionar o porquê de esse tipo de medida passar de forma mais rápida por decisões judiciais do que em forma de projetos de lei. Alguns problemas relativos à Justiça legislando já foram abordados em artigo deste blog. Afora o fato de as leis conferirem maior estabilidade e permanência do que as decisões, é preciso ressaltar que existe uma legislação que define as regras eleitorais e que, portanto, as mudanças deveriam constar nela. No entanto, apesar de existirem projetos de lei que instituem cotas de gênero e raça tramitando faz anos no Congresso Nacional, eles não são aprovados. A última lei aprovada nesse sentido foi a que modificou a Lei das Eleições, instituindo as cotas de gênero , em 1997, e suas posteriores adequações.

Por outro lado, o que vemos todo ano que precede as eleições, são grupos de trabalho montados às pressas para modificar a toque de caixa as leis eleitorais que irão vigorar no pleito do ano seguinte. Não por acaso, as políticas afirmativas de gênero e raça não são devidamente contempladas dada a urgência da tarefa. Assim, chama a atenção que parlamentares, que possuem o poder de redigir e colocar em votação projetos de lei, optem muitas vezes pelo caminho da consulta ao Judiciário para conseguir introduzir medidas mais justas na competição eleitoral. Um exemplo disso foi a consulta feita pela deputada Benedita da Silva, respondida de forma afirmativa, sobre o financiamento proporcional entre candidaturas de pessoas negras e brancas.

No caso exemplificado acima, a decisão do Judiciário está alinhada a uma agenda mais progressista e caminha no sentido de democratizar o processo eleitoral. Mas estamos falando do Judiciário que temos hoje, e que nesse momento parece estar a favor de políticas afirmativas, muito mais do que o Legislativo. Esse último, por outro lado, parece representar com mais exatidão o conservadorismo extremo predominante em boa parte do país. Isso pode ser parte da explicação sobre as dificuldades do desenvolvimento de uma agenda que busque a igualdade na política eletiva. Assim, politicamente o Judiciário acaba se apresentando como um recurso possível para os entraves no Congresso. A questão é: e se um dia o Judiciário se tornar extremamente conservador? Teremos aberto precedente para uma via mais rápida e eficiente para retrocessos?

Sendo assim, é preciso colocar em pauta a necessidade de estabilidade das medidas que são essenciais para a democracia: aquelas que buscam garantir uma representação justa. As discussões sobre reformas eleitorais não podem ser feitas de última hora, pautadas pela pressa da anualidade. Elas devem ser feitas com base em estudos aprofundados, no quais as especialistas nos temas e as organizações da sociedade civil não constem apenas como nomes em falas de quinze minutos, mas sejam verdadeiramente incluídas em um processo de construção de leis eleitorais que promovam a democracia e que sejam perenes, sem a necessidade de alterações a cada dois anos. Além disso, desrespeitando até mesmo os princípios da anualidade, não parece razoável que o Judiciário tome decisões que tornam o sistema instável.

* Nesse sentido, a I Jornada de Democracia, Gênero, Raça e Representação em tempo de Reformas Políticas, a ser realizada nos dias 26 e 24 de abril em parceria entre o Observatório de Candidaturas Femininas da OAB/SP e o projeto A Tenda Das Candidatas é um primeiro passo no caminho aqui esboçado.

*Agradecimento especial ao Humberto Dantas, cujo apoio foi fundamental para o desenvolvimento desse texto.

Estadão

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