O Brasil tem 91 Tribunais, que consomem mais de R$ 100 bilhões por ano. Em troca, a população recebe um dos piores Judiciários do mundo
tentos ao dia a dia do Supremo Tribunal Federal, principalmente depois que a mais alta Corte do país passou a se comportar como um partido de oposição, muitos eleitores sabem que o próximo presidente eleito indicará dois ministros para o STF. O que nem todos sabem é que esta é apenas a ponta do iceberg. Na verdade, o próximo presidente indicará 31 magistrados para dez tribunais diferentes.
A lista inclui nomeações para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entre outras brasileirices. No total, o país tem 91 tribunais diferentes, espalhados por todos os 26 Estados, além do Distrito Federal. O recém-inaugurado Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6), por exemplo, foi inventado em 2021, sob o argumento de “desafogar” o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).
Só para o TRF6, exclusivo de Minas Gerais, o presidente Jair Bolsonaro indicou 18 desembargadores. Ainda não se sabe quanto exatamente esse aleijão custará aos pagadores de impostos quando estiver pronto, em dezembro deste ano. Mas sabe-se que o valor será alto. Só o TRF1, por exemplo, gasta cerca de R$ 3,5 bilhões por ano.
São previstos para o TRF6 44 cargos de “analista judiciário”, 74 cargos comissionados e outros 11 chamados de “funções comissionadas”. A Corte já abriu um processo seletivo para a contratação de profissionais, a maioria na área de tecnologia da informação. Conforme o edital preliminar, o salário inicial de um técnico que atuará no tribunal será de R$ 7,5 mil, enquanto um analista ganhará R$ 12,4 mil. Ao fim da carreira, as remunerações desses cargos podem chegar a R$ 11 mil e R$ 18 mil, respectivamente. Isso sem contar os benefícios.
Rodrigo Freire, professor de Direito Processual Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que os recursos voltados à criação do TRF6 seriam melhor aplicados no fortalecimento da primeira instância da Justiça Federal. “As despesas, ainda que justificadas, são elevadas, quando comparadas a outras necessidades do país”, constatou Freire, ao defender a digitalização da Justiça, mais barata, se comparada a estruturas físicas. “O uso cada vez mais frequente da inteligência artificial pode contribuir para o fortalecimento da gestão do Judiciário.”
As despesas do novo tribunal se somarão aos R$ 12 bilhões que a Justiça Federal consome anualmente para manter uma estrutura obesa, lenta, abarrotada de funcionários públicos e que, na maioria das vezes, faz tudo, menos justiça. No mês passado, por exemplo, a juíza Ana Lúcia Todeschini Martinez, titular do cartório eleitoral de Santo Antônio das Missões e Garruchos (RS), defendeu a proibição da bandeira do Brasil durante a propaganda eleitoral. Na visão da magistrada, o símbolo nacional tornou-se marca de “um lado da política” no país.
Nesta semana, o desembargador Elton Leme, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), ameaçou prender eleitores que reclamarem que seu voto não foi registrado corretamente na urna eletrônica. “Se causar tumulto por alegar que digitou um número na urna, mas apareceu outro, a ordem é prender em flagrante”, advertiu.
Os tribunais regionais
Os TRFs nasceram com a Constituição de 1988, fragmentando o antigo Tribunal Federal de Recursos em cinco sedes: Brasília (TRF1), Rio de Janeiro (TRF2), São Paulo (TRF3), Porto Alegre (TRF4) e Recife (TRF5). Cada Corte é responsável por analisar processos de um conjunto de Estados. É nesses tribunais que as requisições de boa parte dos pagamentos ocorrem, como os famosos precatórios. São os juízes dos TRFs que trabalham com a análise e o julgamento de ações trabalhistas envolvendo a União, suas autarquias, institutos e empresas estatais federais.
Embora haja cinco TRFs, os processos levam tempo para ser julgados. No TRF4, estima-se que uma sentença demore um ano para ser proferida (em alguns casos, o tempo sobe para cinco anos), conforme o mais recente Anuário da Justiça Federal. Com a pandemia de coronavírus, o tempo de espera pode ter aumentado ainda mais.
A indicação dos magistrados que vão ocupar os TRFs cabe ao presidente da República, explicou Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em Direito Público Administrativo pela FGV. “É o que estabelece o inciso XVI do artigo 84 da nossa Carta Magna”, disse a especialista, ao mencionar que há um componente de subjetividade no momento de escolha do magistrado que, em algumas vezes, se sobrepõe ao mérito do juiz. “Se Bolsonaro ganhar, por exemplo, continuará a adotar o mesmo perfil de juízes: conservadores, para manter o apoio do grupo que o apoia. O mesmo acontecerá se outro candidato vencer a eleição.”
O Judiciário brasileiro em números
Conforme o mais recente relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicado em 2021, a força de trabalho do Judiciário é composta de cerca de 440 mil funcionários. São aproximadamente 20 mil magistrados (4%) e quase 270 mil servidores (62%).
Em números absolutos, R$ 100 bilhões por ano são destinados ao Poder Judiciário brasileiro. A quantia equivale a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, ou seja, mais de 1% da soma de todos os bens e os serviços produzidos no país. De acordo com o CNJ, as despesas totais com o Judiciário representam 11% de todos os gastos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Só neste ano, a Justiça Eleitoral pode gastar cerca de R$ 10 bilhões. Já o STF tem à disposição aproximadamente R$ 770 milhões, como prevê o Orçamento da União.
Considerada a mais urgente para destravar a economia, a reforma administrativa tem forte rejeição da classe política e do Judiciário
Para completar, nesta semana, o STF aumentou o próprio salário em quase 20%. A partir de agora, o ordenado de um ministro da Casa vai de R$ 39 mil para R$ 46 mil. Como os salários dos juízes de todo o país estão vinculados aos rendimentos dos ministros do STF, acontecerá o chamado “efeito cascata” — um aumento em cadeia para toda a categoria, muitas vezes seguido de todo o funcionalismo público. A outra vez em que a Corte obteve aumento salarial foi em 2018. Os ministros conseguiram reajuste de 17%. Em troca, os brasileiros recebem o 30º Judiciário mais lento do mundo, dentre 133 países, segundo o Banco Mundial.
Em relação a outros países, o peso do Judiciário brasileiro sobre o PIB é significativamente maior. Na América do Sul, a Venezuela gasta 0,34% do PIB com a Justiça do país, índice levemente superior ao da Argentina (0,32%). Chile e Colômbia desembolsam cerca de 0,2% do PIB com o Judiciário. Na Europa, os gastos da Alemanha correspondem a 0,4% — um porcentual mais de três vezes menor que o do Brasil. Em Portugal, o índice é de 0,3% do PIB. Na Itália, de apenas 0,19%. Inglaterra e Espanha ficam na casa de 0,1% do PIB. As despesas dos Estados Unidos com a Justiça ficam em 0,14% do PIB.
Antonio Carlos Freitas Júnior, especialista em Direito e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público, critica o tamanho do Judiciário brasileiro. Ele afirma que os tribunais têm de se digitalizar cada vez mais, seja para aumentar a eficiência das Cortes, seja para reduzir custos. “Com isso, dispensa-se a criação de novos tribunais”, constatou. “Sem uma estrutura de tecnologia da informação, que hoje faz parte da nossa vida, uma nova Corte pode repetir o mesmo comportamento das que temos hoje.”
Reforma administrativa
Considerada a mais urgente para destravar a economia brasileira, a reforma administrativa tem forte rejeição da classe política e do Judiciário. Parado no Congresso Nacional antes mesmo do ano eleitoral, o texto tem como um de seus pontos mais sensíveis a inclusão de juízes, desembargadores e demais membros nas mudanças para futuros servidores públicos. Inicialmente, o governo não incluiu integrantes do Judiciário e do Legislativo na reforma, mas a equipe econômica já deu sinal verde à proposta.
Se isso se confirmar, os servidores do Judiciário poderão perder o direito a férias de mais de 60 dias e a aplicação de aposentadoria compulsória como punição. No Congresso, há pelo menos três iniciativas de emendas sobre a redefinição das carreiras do funcionalismo. A reforma administrativa já teve parecer favorável por sua admissibilidade na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara.
Manoel Galdino, diretor da organização não governamental Transparência Brasil, defende uma reforma administrativa que alcance o Judiciário. “Temos de cortar gastos”, disse. Ele, contudo, é cético quanto à aprovação de um texto que vá resolver todos os problemas. “Podemos começar por ajustes pontuais. O Judiciário tem de saber que ele precisa contribuir com a sociedade, reduzindo despesas. Tem de ser algo mais republicano.”
A Justiça brasileira hoje é um monstro criado pela Constituição de 1988, que beneficia muito mais a si própria do que a população. Enquanto nada muda, o país — e o povo — permanece à mercê de um Judiciário lento e ineficaz, aparelhado pelo presidente da vez.
Revista Oeste