Maioria das cervejas mais consumidas no país são feitas com milho transgênico

 

As letras miúdas no rótulo das garrafas ou impressas na própria lata, em cores metálicas, que dificultam a leitura, dão algumas pistas: “cereais não maltados” ou “malteados”. O consumidor comum fica sem saber que ingredientes exatamente são afinal. Especialistas em nutrição, entretanto, não têm dúvidas. Em geral é o milho, o mais barato dos grãos, o escolhido pelos fabricantes para compor, com os demais ingredientes, uma bebida que pode ser vendida mais em conta para que não tenham de abrir mão da elevada margem de lucro.

“Como a legislação não exige a especificação de cada ingrediente que constitui a cerveja, as empresas utilizam o termo genérico ‘cereais não maltados’. Ao não colocar a denominação específica, deixam dúvidas quanto à composição. Portanto, é possível partir do princípio de que o milho está sendo utilizado sem que haja indicação da sua presença”, diz a nutricionista Rayza Dal Molin Cortese, pós-graduanda em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Um estudo do Laboratório de Ecologia Isotópica do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da USP, divulgado em 2013, respalda a suposição de Rayza. Ao analisar 77 marcas, das quais 49 produzidas no Brasil e 28 importadas de países da Europa, América do Sul e do Norte e da China, os pesquisadores do Cena/USP concluíram que apenas 21 delas podem exibir o selo “puro malte” por utilizar somente grãos de cevada.

Puro malte?

Entre as nacionais, foi detectado milho na composição de 16 marcas, em quantidades equivalentes a 50% do mix de cereais adicionados à cevada. Essa proporção, aliás, contraria a legislação brasileira, que limita a quantidade de milho, arroz, trigo, centeio, aveia e sorgo a 45% do total da cevada utilizada. E justificaria a troca de nome dessas bebidas prevista em lei: cerveja de milho, cerveja de arroz etc., acrescentando-se o nome do cereal com maior presença na formulação.

Mas seria essa opção adotada por um mercado gigante como o cervejeiro brasileiro, que movimenta todo ano algo em torno de R$ 74 bilhões, cerca de 1,6% do PIB, conforme pesquisa divulgada em março de 2016 pela Fundação Getúlio Vargas?

Dar nome aos cereais – especialmente se for milho – pode não ser considerado “bom negócio” para o milionário grupo de produtores da bebida alcoólica mais vendida no Brasil – cerca de 14 bilhões de litros por ano. Mas faz toda a diferença para os brasileiros que consomem, per capita, todo ano, o correspondente a 62 litros de cerveja.

Primeiro porque mais de 80% do milho cultivado no Brasil, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, está em lavouras transgênicas, semeadas com grãos modificados geneticamente. Com o argumento de aumentar a produtividade, a indústria das sementes alterou o DNA de plantas como o milho para supostamente aumentar a produtividade.

Na realidade, essa biotecnologia as transformou para duas coisas: resistir a quantidades cada vez maiores de agrotóxicos utilizados para matar plantas e indesejáveis à monocultura, que poderiam vir a comprometer essa propalada produtividade; ou para que passem a ter dentro delas proteínas inseticidas, capazes de exalar venenos contra um ataque de insetos.

Incertezas

O problema é que, como essas plantas úteis para o equilíbrio ambiental e indesejáveis para a produção de larga escala vão adquirindo resistência contra alguns princípios ativos de agrotóxicos pulverizados, passam a ser aplicados outros venenos, mais potentes e em quantidades maiores.

As consequências à saúde humana, animal e ambiental devido a tamanha alteração genética em grãos que serão usados direta ou indiretamente na produção de alimentos ainda não foram dimensionadas o suficiente pela ciência. Dos poucos estudos, os resultados são preocupantes, para não dizer alarmantes.

O biólogo, pesquisador aposentado da Embrapa e ex-membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) José Maria Gusman Ferraz, destaca uma pesquisa divulgada em 2012 por pesquisadores franceses que abalou a opinião pública e o mercado de transgênicos em todo o mundo. Chefiados por Gilles-Eric Séralini, da Universidade de Caen Normadie, na França, os cientistas constataram danos ao fígado e rins e distúrbios hormonais em ratos alimentados com o milho transgênico NK603, da Monsanto. Além desses efeitos graves, foi detectado o desenvolvimento de inúmeros tipos de tumores.

O impacto da grande repercussão fez a pesquisa ser questionada e retirada da revista que a publicou originalmente (Food and Chemical Toxicology). Não só: a publicação teve seu corpo editorial reformulado, com a entrada de um nome forte indicado pela Monsanto. Os mesmos resultados, porém, foram publicados em detalhes depois na Environmental Sciences Europe, mostrando todos os danos causados.

Na época, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e outras entidades ambientalistas, de saúde e em defesa da agricultura orgânica, entre outras, pediram a suspensão da liberação comercial dessa variedade do milho.

“Mesmo com este estudo indicando claramente o risco, a CTNBio aprovou sua liberação comercial no país, em um claro desrespeito ao princípio da precaução, que preconiza que se existir possibilidade de risco, a empresa proponente tem de provar que o risco não existe”, afirma Gusman. “Um grupo minoritário dentro da comissão solicitou que, se existiam dúvidas, o estudo deveria ser refeito antes da sua liberação para comercialização. Mas como sempre, foi voto vencido pela maioria – ligada ao agronegócio –, que desprezou esta e outras evidências de que havia sim risco à saúde na liberação comercial.”

Além de professor convidado da Unicamp, onde conduz pesquisas em agroecologia, Gusman se dedica à campanha contra o mosquito transgênico, desenvolvido em laboratório para combater o Aedes aegypti, já solto no interior de São Paulo – outro caso envolto em irregularidades no processo de liberação, com problemas e dúvidas nas pesquisas, o que torna as populações locais cobaias de interesses de transnacionais.

Outro estudo, segundo ele, também acende o alerta contra os transgênicos. Conduzido na Faculdade de Medicina de Tanta, no Egito, constatou que outra variedade de milho da Monsanto, o MON810, alterou profundamente as estruturas que compõem o intestino das cobaias. Surgiram lesões proliferativas e hemorrágicas nas mucosas intestinais, responsáveis pela absorção de nutrientes necessários para o funcionamento do organismo. O milho correspondia a apenas 30% da dieta dos ratos.

Mais venenos

Como lavouras transgênicas são sinônimo do uso de altas doses de agrotóxicos, os especialistas alertam para os perigos dos agroquímicos à saúde e à vida dos agricultores e de quem vive perto das áreas pulverizadas, para aqueles que trabalham nas indústrias de venenos, e para quem ingere alimentos e água carregados de resíduos desses agroquímicos.

Por isso essas substâncias são problema de saúde pública, embora as autoridades de saúde pouco ou nada façam para reduzir, ainda que gradativamente, o uso de produtos tão nocivos. Esses venenos já foram relacionados a diversas doenças, entre elas câncer de vários tipos; alterações endocrinológicas e reprodutivas, como quadros de menstruação, menopausa e andropausa precoce, além de alterações no sistema reprodutor; e até neurológicas, facilitando o desenvolvimento do Mal de Parkinson, por exemplo, conforme pesquisas recentes.

Também podem provocar alterações na gestação que levam ao nascimento de bebês com malformações; distúrbios emocionais incapacitantes, como a depressão; quadros de intoxicação agudas, que conforme o veneno pode matar por asfixia, ou mesmo crônicas, devido a exposições frequentes ou ao acúmulo de resíduos no organismo. Tudo isso num quadro em que algumas dessas doenças podem conviver sem que suas causas sejam associadas aos venenos agroquímicos. O Ministério da Saúde estima que para cada caso notificado, com nexo-causal, há 50 outros totalmente ignorados.

Consumidor desinformado

Para especialistas e ativistas contra os transgênicos e seus perigos, todos os alimentos – bebidas inclusive – com quaisquer vestígios de transgênicos, deveriam receber o selo com a letra T em preto dentro de um triângulo amarelo, símbolo internacional da presença de organismos geneticamente modificados.

Mas a legislação, que no Brasil é criada por setores alinhados com o agronegócio que controlam o Congresso Nacional e setores do governo federal, não vai nessa direção. A nutricionista Rayza Cortese, que pesquisa organismos geneticamente modificados e a rotulagem de alimentos comercializados no Brasil, afirma que a legislação para o tema, estabelecida pelo decreto 4.680/2003, estabelece que “todos os alimentos (e as bebidas alcoólicas são consideradas alimentos) e ingredientes alimentares que contenham ou sejam produzidos a partir de OGMs, com presença acima de 1% do produto, devem ser rotulados”. No entanto, o símbolo não aparece em nenhuma embalagem de cervejas que contenham milho.

E isso apesar de o Idec ter obtido, no Supremo Tribunal Federal (STF), a garantia de rotulagem com o triângulo amarelo em alimentos com ingredientes geneticamente modificados, independentemente da quantidade. Em maio do ano passado, o STF voltou a garantir a indicação no rótulo de alimentos que utilizam ingredientes geneticamente modificados, independentemente da quantidade presente.

A exigência estava suspensa desde 2012, por uma decisão provisória do ministro Ricardo Lewandovski, que atendeu ao pedido da União e da Associação Brasileira de Indústria de Alimentos (Abia).

“A decisão é importante porque enfraquece o projeto de lei que tramita no Congresso para derrubar a obrigatoriedade da informação no rótulo. Sem essa rotulagem, o consumidor tem negado seu direito à informação para decidir na hora da compra, conforme prevê o Código de Defesa do Consumidor”, diz a pesquisadora em alimentos do Idec, Ana Paula Bortoletto.

Palavra da indústria

A Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), que representa a Ambev, a Brasil Kirin, o Grupo Petrópolis e a Heineken – os quatro maiores fabricantes – afirma, em nota à reportagem da RBA, reproduzida em sua íntegra a seguir que “a indústria brasileira da cerveja é reconhecida pela alta qualidade de seus produtos e receitas que conquistaram o gosto do consumidor brasileiro – o que faz o país ser um dos maiores mercados de cerveja do mundo. O respeito ao consumidor é um dos principais valores do setor cervejeiro. É por isso, que aprimoramos sempre os processos, usamos os melhores ingredientes, adotamos as técnicas mais avançadas e inovamos sempre.

“As receitas, obviamente, variam de acordo com a marca e o tipo da cerveja. Os detalhes dessas formulações não são abertos ao consumidor, já que são informações confidenciais e que precisam ser protegidas para preservar o ambiente concorrencial do setor. Cada ingrediente é usado para trazer características ao produto. A utilização de cereais não-malteados na fabricação de cervejas não é uma exclusividade do Brasil. Isso acontece em diversos países. Um dos principais objetivos é conferir características como leveza e refrescância.

“Vale lembrar que as legislações brasileira e do Mercosul permitem que sejam usados cereais não-malteados na produção de cervejas, como milho, aveia, sorgo, arroz etc. Contudo, esse uso não é indiscriminado. A legislação estabelece a participação máxima de 45% destes insumos no chamado extrato primitivo (a parte sólida da cerveja). O setor cervejeiro no Brasil cumpre rigorosamente essa norma. Os padrões de qualidade e segurança da cerveja brasileira são regulados e fiscalizados pelo Ministério da Agricultura, Anvisa, entre outros órgãos.

“As discussões em torno dos organismos geneticamente modificados fazem parte deste grande esforço. Por isso, as cervejarias acompanham de perto a questão e seguem todas as normais legais sobre o uso e rotulagem desses insumos. As cervejarias associadas à Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil)- da qual participam Ambev, Brasil Kirin, Grupo Petrópolis e Heineken – realizaram testes de detecção de DNA transgênico que comprovam a ausência de organismos geneticamente modificados em seus produtos. Além disso, nossos produtos atendem às recomendações nacionais e internacionais mais rígidas de segurança, do início ao fim dos processos produtivos, não representando, portanto, qualquer risco à saúde do consumidor.”

Por: Cida de Oliveira 

       Da RBA 

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