Autores
Rafael Francisco Marcondes de Moraes
Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Processual Penal e em Direito Administrativo. Graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba-Fadi. Professor concursado da Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo. Foi Escrivão de Polícia, Advogado e Oficial de Promotoria.
Francisco Sannini Neto
Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos. Pós-Graduado com Especialização em Direito Público. Professor da Graduação e da Pós-Graduação do Centro Universitário Salesiano de Lorena/SP.
Introdução
Datada de 09 de maio de 2014 e publicada no dia 12 do mesmo mês, a Lei Federal nº12.971 inaugura mais um episódio nas sucessivas reformas legislativas promovidas nos últimos anos no Código de Trânsito Brasileiro – CTB (Lei Federal nº 9.503/1997).
A despeito das modificações implementadas também no âmbito das infrações administrativas[1], cuja violação acarreta penalidades popularmente conhecidas como “multas de trânsito” (sanções pecuniárias e pontuação no prontuário do motorista infrator), este ensaio se concentrará nas mudanças realizadas na esfera criminal, afetas aos intitulados “crimes de trânsito”, vale dizer, nas alterações concernentes aos delitos cometidos na direção de veículos automotores, previstos no destacadoCTB.
Antes de nos aprofundarmos na análise da nova lei, importa consignar que seu artigo 2º veicula expressamente uma vacatio legis (lapso temporal entre a publicação e a entrada em vigor), designando o primeiro dia do sexto mês após apublicação para início da vigência. Assim, as inovações decorrentes da lei em comento serão de cumprimento obrigatório a partir do dia 1º de novembro de 2014, desde que, é claro, não haja a sua revogação. Isto, pois, conforme veremos ao longo deste estudo, a inovação constitui uma verdadeira “barbeiragem” do legislador dentro do Código de Trânsito Brasileiro, ao menos no que se refere à esfera criminal. Aliás, nesse ponto é interessante destacar que, de acordo com a doutrina majoritária e com o entendimento dominante no STF, uma lei publicada não pode ser aplicada durante o seu período de vacatio legis, mesmo que mais favorável ao réu, afinal, ela ainda não está em vigência, estando, portanto, sujeita à revogação.
Feita essa breve observação, é mister destacar que a citada Lei Federal nº12.971/2014 modificou, em síntese, os textos atrelados a quatro delitos do CTB: o homicídio culposo e a lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (arts. 302 e 303), a “embriaguez ao volante” (art. 306) e o “racha” (art. 308).
Conforme já exposto, salta aos olhos a existência de erros grosseiros na técnica legislativa, os quais, além de não suprirem antigas lacunas e pontos divergentes, tais como a ausência de reprimenda satisfatória para os delitos de homicídio e de lesão corporal culposos perpetrados por motoristas embriagados, criam mais imbróglios para serem dirimidos e contornados desde a etapa extrajudicial da persecução penal, a partir dos atos e deliberações legais de polícia judiciária.
Homicídio culposo na direção de veículo automotor (CTB, art. 302)
No tocante ao homicídio culposo na direção de veículo automotor, foi mantido o tipo penal básico do caput, com a respectiva pena de detenção de 2 a 4 anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Foram inseridos dois parágrafos no lugar do parágrafo único, o qual elencava as causas de aumento de pena, de um terço à metade, quando da presença dessas quatro circunstâncias: falta de habilitação; prática do fato em faixa de pedestres ou calçada; omissão de socorro; e cometimento do delito no exercício de profissão ou atividade no transporte de passageiros.
A redação do artigo 302, assim passará a dispor:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1º No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:
I – não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;
II – praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;
III – deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;
IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.
§ 2º – Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:
Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Nota-se que referidas causas de aumento antes arroladas no parágrafo único, foram repetidas e passaram a integrar o agora § 1º, do art. 302, do CTB. Já o novo § 2ºdo artt. 302 CTB consubstancia a principal mudança, e lamentavelmente também o grande desastre introduzido pela Lei nº 12.971/2014.
Como se nota, referido dispositivo busca estabelecer uma qualificadora para o delito do caput, com a pretensa intenção de impor maior rigor quando se tratar de homicídio culposo cometido por motorista embriagado (com capacidade psicomotora alterada) por álcool ou outra substância psicoativa, ou nos casos em que o agente participa de “racha” (corrida, disputa ou competição ou exibição/demonstração de perícia automobilística sem autorização).
Acontece que o preceito secundário ora previsto para essa circunstância qualificadora apresenta uma diferença irrisória meramente quanto à espécie da pena privativa de liberdade, cominando “reclusão” ao invés de “detenção”, como previsto para o tipo penal do caput (homicídio culposo na direção de veículo automotor simples), mantendo, entretanto, a mesma quantidade da pena (de 2 a 4 anos). Trata-se, na verdade, de um infeliz arremedo de qualificadora.
Na prática, a “nova” sanção poderá no máximo influir no regime de pena a ser cumprido (Código Penal, art. 33), isso em raros casos nos quais não houver substituição por penas restritivas de direito (Código Penal, art. 44) ou ainda suspensão da pena (Código Penal, art. 77).
Uma vez mais o legislador brasileiro desperdiçou excelente oportunidade para solucionar a famigerada e antiga divergência envolvendo a configuração de culpa (regra) ou dolo eventual (exceção) nos crimes de trânsito com vítimas fatais ou feridas, cujo adequado tratamento legal é há muito é esperado e proposto pela melhor doutrina.[2]
De fato, a cada acidente de trânsito grave com repercussão, parcela da mídia sensacionalista, sempre atenta aos índices de audiência, porém, desprovida de conhecimento técnico-jurídico mais aprofundado e tampouco de compromisso com a atuação estatal legalista, ainda insiste (e continuará a insistir) em banalizar o instituto do dolo eventual, incorretamente pretendendo imputá-lo como se regra fosse. Ora, se é certo que a pena para o homicídio culposo nesses casos é insuficiente e desproporcional, mais certo ainda é a necessidade de aplicação escorreita da legislação num Estado Democrático de Direito, despida de paixões e pautada pelo respeito às garantias e direitos fundamentais de todos, indistintamente. Nesse contexto, não cabe ao aplicador do Direito se pautar por políticas criminais, os quais devem servir de norte apenas ao legislador.
Vale lembrar que, para a configuração de uma conduta a título de dolo eventual, exige-se que as circunstâncias do caso concreto denotem que houve representação e aceitação do resultado pelo motorista infrator e, sobretudo, que ele demonstrou indiferença às eventuais consequências de seu ato, com total desapreço ao bem jurídico tutelado. A regra geral, repise-se, é a modalidade culposa, na forma de culpa consciente, na qual o sujeito vislumbra a possibilidade do resultado danoso, porém acredita ter condições de evitá-lo.[3]
Poderia (e deveria) o Poder Legislativo simplesmente ter inserido qualificadoras para os crimes de homicídio e de lesão corporal culposos na direção de veículos automotores nas hipóteses de estado de embriaguez do agente ou de sua participação em “racha”, cominando para tais circunstâncias patamares de pena efetivamente mais severos, e não um despiciendo recrudescimento da espécie de pena privativa de liberdade de “detenção” para “reclusão”, com idêntico quantum de pena do tipo comum.
Lastima-se também que o “estrago” legislativo não tenha se limitado à ausência de uma necessária sanção penal mais rigorosa para motoristas bêbados e altamente inconsequentes. Isso porque, ao concentrar como qualificadora a circunstância do motorista encontrar-se embriagado, o novo texto retira a autonomia do delito de “embriaguez ao volante” em relação ao homicídio culposo, entendimento até então majoritário, que viabilizava o concurso entre os dois crimes e propiciava o aumento da reprimenda estatal, tanto pela somatória das penas (para aqueles que consideravam se tratar de concurso material), quanto pelo sistema da exasperação (para os filiados à tese do concurso formal).
Assim, a sanção penal aplicável ao motorista embriagado homicida será a de reclusão de 2 a 4 anos, da nova figura “pseudoqualificada”, restando o delito de embriaguez ao volante por ela absorvido.
Ademais, como a pena máxima em abstrato não suplanta 4 anos, facultará, como regra, o arbitramento de fiança nos casos de prisão em flagrante delito (CPP, art.322), o que também podia ser afastado pelo Delegado de Polícia quando de sua deliberação pelo concurso de crimes em sede de segregação provisória extrajudicial.
Assinala-se que a avaliação técnico-jurídica para a decretação ou não da prisão em flagrante delito e consequente determinação de indiciamento do suspeito[4], ultimada em sede de cognição urgente e sumaríssima, consiste em prerrogativa e incumbência legitimada à Autoridade Policial. É dever legal do Delegado de Polícia examinar se há, no caso concreto, além das hipóteses legais flagranciais (CPP, art. 302, I a IV), a “fundada suspeita” contra o investigado apresentado (e não mera conjectura desprovida de indícios vigorosos), em observância ao artigo 304, § 1o, do CPP, devendo decidir fundamentadamente seguindo a sua convicção jurídica, com independência funcional mediante exposição dos motivos fáticos e legais.[5]
Anota-se, ainda, mais uma trapalhada da nova lei. Pela ordem de disposição dos parágrafos 1º e 2º, podemos concluir, por meio de uma interpretação sistemática, que as causas de aumento só incidirão para o homicídio culposo simples do caput do art. 302, e não para a forma qualificada do § 2º. O ideal seria que houvesse uma inversão na ordem dos dispositivos, evitando-se, assim, qualquer interpretação em sentido contrário.
Lesão corporal na direção de veículo automotor (CTB, art. 303)
Para este delito, a Lei nº 12.971/14 limitou-se a alterar o texto do parágrafo único do artigo 303, que remete a aplicação das mencionadas causas de aumento do homicídio culposo também à lesão corporal culposa, antes arroladas no parágrafo único do art. 302, e que passaram para o novo § 1º. Assim ficou a redação do dispositivo:
Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do § 1º do artigo anterior.
Como já antecipado, mais uma vez o legislador se omitiu e não incluiu uma salutar figura qualificada para a lesão corporal culposa para os motoristas bêbados e participantes de corridas automobilísticas não autorizadas, deixando para incrementar indevidamente a morte e a lesão corporal nas figuras qualificadas diretamente no delito de “racha” do art. 308 do CTB, adiante comentado.
Embriaguez ao volante (CTB, art. 306)
Para o crime do artigo 306 do CTB, a Lei nº 12.971/2014 apenas acrescentou expressamente no § 2º o teste toxicológico como uma das formas de verificação do elemento do tipo penal “capacidade psicomotora alterada”, quanto às outras substâncias psicoativas que determinam dependência além do álcool, tais como a cocaína e a maconha. Referida alteração apenas reforça o teste toxicológico para fins de comprovação do delito, não obstante já pudesse ser empregado na prática por não ser meio de prova vedado na lei. Percebe-se, pois, que o legislador pecou por excesso nesse ponto, afinal, no Brasil, infelizmente, às vezes é preciso esclarecer o óbvio.
Com o mesmo propósito, também foi inserida, de modo explícito no § 3º do art. 306, a possibilidade de edição de atos pelo Contran para dispor sobre a equivalência entre testes toxicológicos para a configuração do delito de “embriaguez ao volante”. A previsão torna mais dinâmica a disciplina legal de futuras tecnologias de aferição da influência por drogas psicoativas que venham a ser desenvolvidas, sem a necessidade de novas leis ordinárias para tal desiderato. O texto do artigo 306 doCTB assim passa a dispor:
Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1º – As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I – concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II – sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
§ 2º – A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
§ 3º – O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia ou toxicológicos
para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo (grifamos).
Participação em competição não autorizada – “racha” (CTB, art. 308)
Esta foi a figura típica com maior alteração redacional provocada pela Lei nº12.971/2014:
Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente,gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:
Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículoautomotor.
§ 1º – Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.
§ 2º – Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” (grifamos)
O preceito primário sofreu ligeira mudança, trocando a expressão “desde que resulte dano potencial” por “gerando situação de risco” à incolumidade pública. Acreditamos que referida alteração mantém o delito como de perigo concreto, exigindo a demonstração da situação de risco no caso prático.
Percebe-se também que o tipo comum, do caput do art. 308 do CTB, deixou de ser infração de menor potencial ofensivo (Lei Federal nº 9.099/95, art. 61), visto que a pena máxima cominada, antes de 2 anos, foi aumentada para 3 anos.
O delito do art. 308, caput, torna-se o terceiro, dos onze crimes do CTB, a cominar pena que admite de início a prisão em flagrante delito (e não elaboração de termo circunstanciado), juntamente com o homicídio culposo e a embriaguez na direção de veículo automotor, sendo cabível também o arbitramento de fiança criminal na fase extrajudicial (CPP, art. 322). Consigne-se, todavia, que, por se tratar de delito cuja pena mínima cominada em abstrato é inferior a um ano, o agente poderá ser beneficiado com a suspensão condicional do processo, prevista no artigo 89, da Lei Federal nº 9.099/95.
Passemos agora ao ponto que tem gerado maior polêmica dentre as inovações da lei em estudo: as figuras qualificadas para o delito de “racha”.
Enquanto o § 1º do art. 308 considera o resultado lesão corporal grave culposa(sem dolo direto ou eventual) como circunstância que qualifica o delito, impondo sanção penal de 3 a 6 anos de reclusão, o § 2º traz como qualificadora a morteproduzida a titulo de culpa (não quis o resultado – dolo direto; nem assumiu o risco de produzí-lo – dolo eventual), apenada de 5 a 10 anos de reclusão.
Ocorre que a conduta típica de causar a morte culposamente quando da participação em corrida, disputa ou competição automobilística sem autorização pela autoridade competente se subsume de igual modo ao tipo penal da nova figura qualificada do § 2º do art. 302, o qual, porém, comina pena muito inferior, de 2 a 4 anos de reclusão, como já apontado. Trata-se de inaceitável falha na técnica legislativa. O delito de perigo (“racha”), por óbvio, deve ser absorvido pelos mais graves, de dano (homicídio ou lesão corporal).
Com isso, sob um prisma técnico-jurídico, a solução apropriada será aquela mais favorável ao investigado ou réu, ou seja, o enquadramento na figura qualificada do homicídio culposo do § 2º, do art. 302, tornando na prática letra morta o § 2º do art. 308 contendo idêntica hipótese fática.[6]
Por outro lado, pode-se argumentar, por meio de uma interpretação teleológica, que a vontade do legislador, manifestada na Lei nº 12.971/2014, foi no sentido de agravar a reprimenta para os casos em que houver morte em virtude da prática do “racha”. Assim, para que a inovação legislativa não se torne “letra morta”, a única solução seria a adoção do entendimento em que o crime mais grave, qual seja, o agora previsto no artigo 308, § 2º, do CTB, absorvesse o crime menos grave, tipificado no artigo 302, § 2º, do mesmo codex. Tal entendimento pode, inclusive, ser subsidiado pelo princípio da proporcionalidade, mais especificamente na sua esfera de proteção insuficiente, afinal, a conduta daquele que causa a morte de outrem em virtude da prática do “racha” é de enorme gravidade, constituindo verdadeira afronta à sociedade e ao próprio Estado.
No mesmo sentido, podemos nos valer do princípio da especialidade para reforçar esse entendimento. Ora, se o caput do artigo 308 pune o crime de “racha” e o seu § 2º nos apresenta uma modalidade qualificada desse crime, é obvio que essa conduta é específica para aquele caso, devendo, consequentemente, prevalecer sobre a conduta descrita no artigo 302, § 2º, que é genérica. Apenas para ilustrar, caso o tipo penal do artigo 306 trouxesse uma figura qualificada envolvendo morte, esta seria especial em relação ao delito de homicídio previsto no artigo 302, até porque há uma clara distinção entre os bens jurídicos em questão. De qualquer modo, tais divergências tão contundentes não ocorreriam se o legislador atuasse com o mínimo de cautela e técnica jurídica.
Impende registrar que a incongruência e desproporcionalidade entre a pena cominada ao “racha” qualificado pela lesão do § 1º do art. 308 (de 3 a 6 anos) com a pena a ser aplicada ao mesmo delito quando houver resultado morte (de 2 a 4 anos do art. 302, § 2º), também ensejará a inaplicabilidade dessa figura qualificada do “racha”. Por coerência e ausência de outro tipo penal (ou qualificadora) adequado, o agente acabará respondendo pelo crime de lesão corporal culposa do art. 303, do CTB, com a branda pena de 6 meses a 2 anos, salvo, é claro, se adotarmos o mesmo raciocínio exposto acima.[7]
O mais inacreditável de tudo isso, como bem apontado por Marcelo Rodrigues da Silva[8], é que o citado erro grosseiro quanto às qualificadoras do art. 308 já havia sido devidamente indicado durante a tramitação do Projeto de Lei que originou a Lei nº 12.971/2014 (Projeto nº 2592/2007), em relatório da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, com trecho abaixo transcrito:
Todavia vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma incongruência de natureza redacional. Ora a parte final do § 2º do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei nº 2.592-A/07, aprovado na Câmara dos Deputados em 24/4/2013, existe duplicidade de condutas típicas, pois, em acatando emenda de Plenário, esqueceu o Relator de verificar que o fato já estava tipificado em outro dispositivo[9] (grifamos).
Em verdade, causa-nos espécie que uma aberração jurídica dessa seja aprovada pelo nosso Poder Legislativo e, pior, sancionada pelo Poder Executivo. Diante de todas as ponderações lançadas, só podemos chegar a duas conclusões: ou existe uma imensa má vontade legislativa ou os nossos Poderes estão muito mal assessorados!
CONCLUSÃO
Diante dos intoleráveis equívocos contidos na Lei Federal nº 12.971/2014, resta torcer para que o Poder Legislativo se prontifique tempestivamente para sanar tais vícios, embora, por se tratar de ano eleitoral, acompanhado das respectivas campanhas, há pouca esperança de efetiva mobilização parlamentar nesse sentido, o que acena para mais um acidente legislativo com sequelas a longo prazo assim que a nova lei entrar em vigor. Em se mantendo esse quadro, portanto, só nos restará a doutrina para encontrar uma solução para as “barbeiragens” cometidas pelo legislador, sendo o presente ensaio apenas uma “bandeirada de largada” nesse sentido.
NOTAS
[1] No que concerne às infrações administrativas, a Lei nº 12.971/2014 elevou, de um modo geral, as penalidades de multa envolvendo a violação de normas afetas à disputa de corridas, à demonstração e exibição de manobras e às ultrapassagens irregulares (CTB, arts. 173, 174, 175,