Luís Eduardo Gomes
Há cinco junhos, o Brasil parou. Durante todo o mês, milhões de pessoas foram às ruas protestar, primeiro contra o elevado preço das tarifas de ônibus, depois por uma série de reivindicações que até hoje a classe política e estudiosos têm dificuldade de compreender. Independente de não haver um consenso sobre o que foi aquele período de 2013, é uma história cuja semente, em Porto Alegre, está na união de diversos movimentos sociais, com muitas divergências entre si, como o Bloco de Luta pelo Transporte Público.
Para entender o que levou dezenas de movimentos a se juntarem sob um único nome, é preciso fazer uma digressão ao passado e ao período em que os valores das tarifas começaram a subir acima da inflação. Isto é, a partir dos anos 2000. Em 2001, uma passagem de ônibus em Porto Alegre custava R$ 0,95. Em 2007, já estava em R$ 2. Chegaria ao dobro do valor, de novo, em 2017, quando alcançou os R$ 4,05. Crescendo sempre acima da inflação.
O cientista social e ex-integrante da comissão de segurança do Bloco de Luta Murilo Gelain explica que, desde a primeira década do século, já havia a intenção de fundar uma versão local do Movimento Passe Livre (MPL), entidade criada em São Paulo para servir de “guarda-chuva” aos diversos movimentos menores que se uniam na luta contra o aumento da tarifa. Outra inspiração era o movimento que existia em Florianópolis e que, nesse período, caracterizava-se por promover grandes protestos.
O historiador Matheus Gomes, que compôs a comissão de organização do Bloco e à época era filiado ao PSTU, também avalia que a inspiração veio de fora, mas cita as ondas de manifestações com a pauta do transporte público em cidades do Norte e Nordeste do País. “São Paulo também tem uma onda de protestos que vai durar algumas semanas em 2011. É ali que o MPL se articula como tal para desenvolver as mobilizações de 2013”, diz.
Até 2011, eram pelo menos dois grupos que tentavam pautar criticamente o reajuste das passagens de ônibus na capital gaúcha. A pauta era a mesma, mas as organizações por trás tinham diferentes concepções políticas e maneiras de se organizar. A primeira era formada por anarquistas, autonomistas e defensores de vertentes comunistas mais utópicas, não institucionalizadas, que se reuniam em torno da ocupação Utopia e Luta, berço de um movimento autonomista de mesmo nome, localizada na Borges de Medeiros. A segunda era composta por movimentos mais ligados a partidos, especialmente PSTU e PSOL, e se reunia em torno do Diretório Acadêmico Central da UFRGS. “Era uma separação bem demarcada”, diz Murilo.
Uma unidade começaria a ser formada em 2011, quando há uma primeira convergência de entidades que irão formar o Comitê de Luta Contra o Aumento das Passagens, então constituído pelo Diretório Central dos Estudantes da UFRGS, da FAPA, diretórios acadêmicos universitários, grêmios de escolas estaduais, movimentos sindicais vinculados a partidos, movimentos jovens como o Levante Popular da Juventude, a Assembleia Nacional de Estudantes Livres (Anel-RS), Utopia e Luta e até representações sindicais do Cpers e do Sindicaixa. “Sempre juntava uma gurizadinha e saia o protesto. Em 2011, começou a crescer um pouco. Em vez de ter 50 pessoas, tinha 150, 200”, diz Luciano Fetzner, que faz parte da direção do SindBancários e também atuou na organização do Bloco.
Ares revolucionários
Para entender o que houve no Brasil em 2013, também é preciso entender o contexto de ondas de protestos globais e os “ares revolucionários” que vinham se espalhando pelo mundo há pelos menos três anos. A começar, em dezembro de 2010, pela eclosão da Primavera Árabe na Tunísia e em outros países árabes. Em maio de 2011, a Espanha seria tomada por uma série de manifestações praticamente diárias que ficaria conhecida como “Os Indignados”. Em setembro daquele ano, seria a vez do Occupy Wall Street se espalhar pelos Estados Unidos. Já em maio de 2013, na véspera das manifestações no Brasil, a Turquia passou por uma onda semelhante de protestos. “Isso aqui vai virar a Turquia”, diziam várias cartazes que apareceriam em junho pelo País.
Em comum, todas essas manifestações tinham um caráter antissistêmico e uma estratégia de organização de continuidade da mobilização que partia eminentemente das redes sociais, com movimentos sem lideranças identificáveis e que pregavam a horizontalidade entre seus membros. O conteúdo de seus protestos era rápida e massivamente propagado pela internet. Eram também não institucionalizados, mesmo quando tinham caráter mais marcadamente à esquerda, como na Espanha e nos EUA (onde a pauta era o combate aos privilégios dos 1% mais ricos), com fortes críticas aos partidos estabelecidos. Era também o período em que o coletivo hackerativista Anonymus crescia e promovia manifestações que tinham como símbolo a máscara de Guy Fawke.
“Aquilo deu um gás para esse novo repertório de ação política que não estava vinculada necessariamente a um projeto de sociedade que se pautasse na política institucional”, diz Murilo Gelain. Em Porto Alegre, aqueles ares chegaram em um primeiro momento, de forma embrionária, no final de 2011 e início de 2012, quando um grupo de pessoas acampou no Largo Glênio Peres e formou o Ocupa Poa.
Unidade, recuo, unidade
O Comitê voltaria a se mobilizar com mais força em 2012, para combater a proposta de aumento da passagem de ônibus de R$ 2,70 para R$ 2,90, em atos realizados entre o final de janeiro e o início de fevereiro. A estratégia que passaria a ser adotada não era mais de atos esporádicos para acompanhar o calendário de reajuste, mas sim de continuidade das mobilizações, como visto em outros países. Há nesse momento, contudo, um racha no movimento que coloca, de um lado, anarquistas e autonomistas e, de outro, os vinculados às estruturas tradicionais. A unidade existe, mas ela está dividida em duas. Os primeiros já operam sob o nome de Bloco de Luta pelo Transporte Público.
Independentemente do racha, quando o aumento é homologado para R$ 2,85, essa coalizão de movimentos promove atos maiores no final de fevereiro e no início de março pedindo a revogação do reajuste, que irá persistir. É nessa época que surgem palavras de ordem como “mais um aumento eu não aguento” e “R$ 2,85 é crime”, frase que até hoje pode ser lida em pichações da época que resistem em muros da cidade.
O embrião de 2013 já estava plantado, mas o que vai explicar como protestos que antes reuniam centenas de pessoas nas ruas de Porto Alegre chegam à casa dos milhares é um momento cultural e político na cidade diferente do que se via antes. Era um período em que o “direito à cidade” estava em pauta, ditando ações de “retomada das ruas”, seja por ações dirigidas por movimentos formais ou de modo espontâneo. É durante o inverno de 2012, por exemplo, que a ocupação da escadaria da Borges de Medeiros, no entorno de bares, vive seu ápice, ocorrem ações como a Serenata Iluminada, de ocupação noturna de parques, e movimentos como Defesa Pública da Alegria ganham os espaços públicos. Grupos de ciclistas se fortalecem, bem como as marchas da maconha e das vadias. A resistência aos efeitos da Copa do Mundo, que já era travada há alguns anos pelo Comitê Popular da Copa, também ajuda a compor o caldeirão de pautas em ebulição na cidade.
Isso resultaria, ainda em 2012, na fatídica manifestação de centenas de pessoas “contra o tatu-bola”, em que o mascote da Copa erigido no Largo Glênio Peres por uma patrocinadora seria esvaziado por manifestantes, precedendo uma forte ação da Brigada Militar e da Guarda Municipal e um confronto com ares de batalha campal. O episódio seria o primeiro de expressiva repressão policial contra atos convocados por essa coalizão de movimentos, deixando mais de 60 feridos. Também seria tomado como exemplo pela BM, que até hoje o relembra e utiliza como justificativa para repressões, em razão de um soldado ter sido atingido por uma pedrada na cabeça. No entanto, um relatório elaborado à época pela Ouvidoria da Secretaria de Segurança Pública do RS apontou que a violência foi iniciada pelas forças de segurança.
Organização antecipada
Com os representantes das diversas entidades se encontrando em ações nas ruas, em festas, em eventos culturais, nas universidades ao longo de todo o ano de 2012, a expectativa para como seria a atuação do Bloco de Luta em 2013 era crescente. Antes mesmo do aumento entrar na pauta da cidade, a partir de outubro já começaram a ocorrer as primeiras reuniões.
“Muita gente que foi se encontrando no inverno de 2012 em aglomerações que tinha tanto no Largo Zumbi dos Palmares quanto na escadaria da Borges, e mesmo depois, na praça da Ponte de Pedra. Era uma galera que se encontrava direto nesses lugares. ‘Pa, pa, ano que vem vai ter’. Quando chegou em dezembro, se marcou um evento no Facebook e foram 200 pessoas na reunião. Aí, nesse momento, levantou as orelhas do DCE da UFRGS, da juventude do PT, da juventude do PSOL, do PSTU, do PCdoB, de vários movimentos anarquistas, autonomistas”, diz Luciano.
“Eu lembro que a gente saia de uma assembleia e ia para uma festa na rua, tipo a Serenata Iluminada, e eram as mesmas pessoas. Aí tu ia num restaurante vegano, eram as mesmas pessoas. Todos esses outros ambientes tinham rostos conhecidos que a gente via nas manifestações, nas assembleias, nas festas, na universidade. Parece que todo mundo tinha uma vontade de participar e todo mundo ia a tudo que estava acontecendo, organizava diferentes coisas. Acho que tinha uma aura de luta que não era só política, mas artística, cultural e social que era o combustível para o Bloco”, diz Murilo.
“Da minha experiência, o que eu coloquei nesses debates de outubro de 2012 a janeiro de 2013 foi que o racha que tinha acontecido em 2012 precisava ser invertido. Ambos os lados tinham acumulado alguma força social em 2012, que, se colocado em articulação conjunta, poderia ter um desempenho superior”, diz Matheus Gomes. Em 8 de janeiro, o racha é definitivamente superado e o nome Bloco de Luta passa a unificar as duas correntes.
Ali já dava para perceber que havia algo de diferente no ar. Se, em anos anteriores, um ato com 500 pessoas já era considerado algo grandioso, logo nas primeiras reuniões de organização do bloco participavam pelo menos 100 pessoas, oriundas de dezenas de movimentos. Representantes de partidos, de juventude, sindicalistas, autonomistas e anarquistas todos sentavam à mesa agora para propor e ouvir estratégias para as manifestações, quem ficaria responsável pela divulgação, pela panfletagem, pela segurança dos participantes e por evitar conflitos. As reuniões duravam horas. Ocorriam em diversos lugares.
Era uma “democracia construída a duras penas”, como define Matheus. “O foco era só a passagem, mas o processo que se construiu a partir dali cansava muito, porque era intenso. Na essência, aquilo ali era muito se fosse só pela passagem, porque era uma infinidade de debates”.
Sem partido
Desde início, a questão partidária foi alvo de debates. Grupos de autonomistas e anarquistas, que adotavam ideias anti-partidárias, e movimentos não institucionalizados resistiam a atuar ombro a ombro com quadros políticos. Era essa uma das razões que fazia com que, antes da união, os protestos fossem diluídos. O temor desses grupos era de que entidades e pessoas ligadas a partidos fossem tentar capitalizar as ações de forma eleitoreira. Para acalmar os ânimos, chegou-se a um consenso de que bandeiras seriam permitidas, mas limitadas a duas por cada partido ou organização. Também não poderiam estar posicionadas à frente dos atos, que seriam espaços restritos a faixas que representassem o conjunto de organizações e pautas.
“Isso foi um acordo construído para pacificar”, diz Matheus. “Olhando hoje, tinha uma antipolítica de esquerda bastante forte nos movimentos sociais, principalmente nos movimentos de juventude. Eu acho que esse processo está relacionado ao fato de o PT ter ido ao poder. Várias manifestações se chocavam com políticas do PT, principalmente a questão da Copa, para não ampliar muito”.
Apesar do acordo, as divergências quanto ao assunto não acabaram. Murilo conta que, quando o primeiro ato estava se formando, um grupo de autonomistas chegou à concentração, viu as bandeiras dos partidos e foi embora. “Não quiseram participar. Depois, comentaram que foram embora porque viram as bandeiras”.
Este primeiro ato viria a ocorrer no dia 21 de janeiro, quando a proposta de reajuste de passagem, então em R$ 2,85, ainda não havia sido apresentada. À época se falava em R$ 3,15, antes de a proposta se assentar no malfadado reajuste de 20 centavos. Cerca de 200 pessoas percorreram as ruas do Centro de Porto Alegre na tarde daquele dia. Dali a nove dias, em um novo protesto, uma caminhada do Bloco partiu da Rodoviária com seus membros usando uma tarja preta em memória das vítimas da tragédia da boate Kiss, ocorrida dias antes. Na altura da Santa Casa de Misericórdia, encontrou outra marcha que vinha da Av. João Pessoa, organizada pelo Sindicato dos Rodoviários, em luta pela campanha salarial, e os movimentos terminaram o dia protestando, juntos, diante da Prefeitura.
Em 18 de fevereiro, mais um ato, ainda na casa das centenas de pessoas, mas com a indignação no ar e nas faixas. Roubo, assalto, vergonha, eram palavras que marcavam os cantos e os dizeres dos cartazes.
Das centenas aos milhares
Um dos fatores que retardou o aumento da tarifa naquele ano, que geralmente ocorre entre o final de fevereiro e o início de março, foi um parecer do Tribunal de Contas do Estado (TCE) emitido em 29 de janeiro apontando para a necessidade de revisão do cálculo do aumento da passagem de ônibus. Um questionamento feito era de que a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) não poderia considerar a frota total de veículos na planilha, como vinha fazendo, mas sim a frota que estava em operação nas ruas, pois, do primeiro modo, isso diminuiria artificialmente a produtividade do sistema. O TCE ainda apontava que a planilha tarifária não estava levando em conta a desoneração sobre a folha de pagamento aprovada em lei federal de 2012 para as empresas de transporte coletivo. Caso essas medidas fossem adotadas, a passagem, então em R$ 2,85, poderia ser reduzida para R$ 2,60. O parecer iria influenciar o pedido do Bloco de redução na tarifa e uma ação na Justiça que resultaria na suspensão do reajuste. Por outro lado, chegou-se a ventilar a possibilidade da tarifa subir para R$ 3,30.
No dia 21 de março, o Conselho Municipal de Transporte Urbano (Comtu), órgão que delibera a questão, bate o martelo e aprova o reajuste da tarifa para R$ 3,05, que seria na sequência homologado pelo prefeito José Fortunati (PSB, na época do PDT). “Quando consuma o aumento, uma segunda-feira (25), ali se criou uma ordem de mobilizações distinta. Teve ato de manhã saindo da zona norte, a gurizada caminhou de perto da estação Farrapos até a Prefeitura. De tarde, teve uma mobilização que saiu do Campus do Vale até a PUCRS caminhando. A galera trancou o trânsito na Ipiranga por meia hora, 40 minutos”, diz Matheus.
Ao mesmo tempo que havia uma chamada para um ato na UFRGS, outro ocorria na PUCRS. “É uma ideia meio maluca, como assim um ato vai sair da PUC e outro da UFRGS?”, relembra Lucas Maróstica, que à época era estudante de Jornalismo na Pontifícia e de Ciências Sociais na Federal. Nesse dia, ele estava na segunda. “Lembro que tinha uma atividade do David Harvey em Porto Alegre. Lá no Campus do Vale da UFRGS a gente ficou sabendo que estudantes da PUC haviam sido agredidos. E, de fato foram, teve um que levou uma cacetada e quebrou o braço. A repressão foi desmedida e desnecessária, algo completamente troglodita por parte da Brigada Militar. Nós resolvemos sair em caminhada do Campus do Vale até a PUCRS”.
Era um grupo formado por entre 300 e 500 pessoas. Maróstica conta que, por ser uma região até certo ponto pouco habitada e de baixa circulação de pedestres, o temor era que eles também fossem vítimas de repressão. Durante todo o percurso, foram acompanhados por um aparato da BM. “Se a polícia quisesse ter nos agredido, ninguém teria visto, nada teria acontecido”. Mas concluíram a marcha. “Foi um momento de total euforia conseguir chegar até a PUCRS e se solidarizar com o outro ato. A ação da BM juntou duas universidades e deixou as duas eufóricas. Se tinha 300 ou 500 pessoas na caminhada do Vale, não interessa, o que importa é que a comunidade acadêmica da UFRGS tem 30 mil pessoas e a da PUC também”.
A próxima manifestação, em 28 de março, foi a primeira que rompeu a barreira das mil pessoas. Uma grande massa percorreu as ruas do Centro e ocupou a frente da Prefeitura para pressionar o então prefeito José Fortunati a não homologar o reajuste. “Antes de ter 10 mil, levar mil e quinhentas pessoas para a rua era uma vitória absurda”, diz Maróstica.
O episódio ficou marcado de diversas formas. O então secretário de Governança, Cezar Busatto (MDB), foi atingido por tinta vermelha quando os manifestantes tentaram forçar a entrada no Paço Municipal. Revoltados, ele e o prefeito foram às rádios no dia seguinte acusar os manifestantes de serem baderneiros. Também houve uma forte utilização do aparato de dissuasão (bombas de efeito moral e tiros de bala de borracha) para dispersar a multidão ao final. A semente da criminalização dos atos também foi plantada ali. Uma jovem foi presa e a Polícia Civil abriu um inquérito que iria culminar na denúncia de manifestantes por depredação da Prefeitura. “Pensando hoje, cinco anos depois, isso [a repressão] foi comum. Mas naquela época não era. Era uma novidade no ambiente urbano”, diz Matheus.
Para o ex-prefeito José Fortunati, foi nessa ocasião que ele se deu conta que as manifestações contra a passagem não seriam como as de anos anteriores. “Foi quando eu percebi que toda e qualquer coisa que acontecia na cidade acabava ganhando grandes proporções. Não somente pela forma, mas pela radicalização dos protestos. Já em março dava para perceber claramente que os protestos de 2013 eram diferentes dos anos anteriores”, diz, mencionando ainda que, na naquela ocasião, houve uma tentativa de “espetar” Busatto com uma lança. “Tem testemunhas disso”.
Cinco anos depois, Fortunati defende que os protestos de 2013 tiveram legitimidade, mas ressalta que mantêm a posição de classificar ações como aquela, mas principalmente a de black blocs, como “baderna”. “Eu sempre defendi direito total e irrestrito de manifestação, com a cara destapada. Eu fiz manifestações durante a ditadura militar, quando era presidente da CUT-RS. Apanhei muito. Tem uma foto famosa da Jussara Cony me levantando depois de eu ter apanhado do pelotão de choque, mas nunca tapamos a cara. Por que se, durante a ditadura, nós nunca cobrimos o rosto, em pleno estado democrático de direito – e em 2013 é indiscutível isso – se tapa o rosto? É pra fazer baderna”.
O movimento não pararia. Pelo contrário, ganharia força. Em 1º de abril, eram cinco mil pessoas na rua. Algo estava acontecendo. Ainda não era junho, mas a onda de protestos contra o aumento da passagem já não era mais do mesmo, apenas atos isolados, restritos a pequenos grupos de estudantes como em anos anteriores. Era um mar de gente que ocupava o Túnel da Conceição e cobria os dois lados do viaduto da Borges. Por uma ação da bancada do PSOL da Câmara de Vereadores, uma liminar suspendeu o reajuste da passagem, o que levou, no dia 4 de abril, a mais um grande protesto no cair tarde no Centro. Dessa vez, uma comemoração, sob chuva, da decisão judicial.
O que explica o tamanho daquelas manifestações? Na avaliação de Murilo, o combate ao reajuste acabou ganhando força por seus efeitos serem bastante concretos. “É diferente do aumento da inflação em outros produtos, que tu vê ele sendo repassado gradualmente, dois ou três centavos, que, às vezes, tu acaba nem percebendo. O aumento da tarifa é muito perceptível porque é muito forte. Aumenta 20, 30 centavos. Um dia tu paga R$ 4, no outro R$ 4,20, R$ 4,30. Tu sente no bolso de maneira mais contundente”.
Além disso, havia a novidade de que o Bloco constituía um “guarda-chuvão” para as diversas forças que o compunham e, pela sua estruturava, que buscava a horizontalidade, suas discussões permitiam que todo mundo trouxesse suas pautas. Então, os estudantes, por exemplo, traziam a reivindicação do passe livre estudantil, articulando com a ideia de que o alto preço das tarifas estimulava a evasão escolar. O movimento negro trazia a defesa da passe livre para quilombolas. Os sindicalistas apontavam que as passagens vinham aumentando constantemente acima da inflação e dos reajustes salariais. E assim por diante. Acima de tudo, havia como uma crítica comum à maneira como a tarifa era calculada e de que faltava transparência.
O ex-prefeito José Fortunati defende que a planilha tarifária de Porto Alegre é a mais transparente do Brasil e que todos os seus itens são acompanhados pelo Tribunal de Contas e estão disponíveis na internet. “O preço da passagem é calculado tecnicamente, não tem mágica. Se ele for feito como é feito em Porto Alegre, técnico, não tem almoço grátis, alguém tem que pagar. Em São Paulo, o subsídio que a Prefeitura dá para que o preço da passagem não exploda é de R$ 3 bilhões, que estão saindo da assistência social, da educação, da saúde, de algum lugar. Para tu ter uma ideia, o orçamento de Porto Alegre para 2018 é de R$ 6,8 bilhões”, diz, acrescentando ainda que segue considerando incompreensível a decisão judicial que suspendeu o aumento da tarifa. “O juiz diz na sentença que estava ‘ouvindo o clamor popular’. Ora, juiz que decide pelo clamor popular, para mim, rasga o Direito em qualquer situação, pela direita ou pela esquerda”.
Mais alguns atos, menores, ainda foram realizados, com a pauta sendo a redução para R$ 2,60, mas a batalha principal estava momentaneamente ganha e as ruas se esvaziavam. Matheus explica que nesse período, de maio a junho, uma parte do Bloco, ligada a movimentos estudantis, se volta a congressos universitários pelo País. Há um contato grande com jovens que organizavam o MPL em São Paulo e em outros estados. Ele conta que, em 1º de junho, participa de um encontro de movimentos estudantis em que são exibidos vídeos da “vitória de abril” na Capital com o objetivo de estimular que o exemplo fosse trabalhado em escolas e na periferia da capital paulista. Ao mesmo tempo, as organizações que tinham caráter nacional também promoviam trocas sobre a experiência de Porto Alegre.
A luta de movimentos sociais reunidos no Bloco de Luta pelo Transporte Público contra o aumento das passagens serviu de gatilho para o MPL ir às ruas de São Paulo no início de junho de 2013. A inspiração era visível em faixas e refletida na tática de não sair das ruas até que uma vitória fosse conquistada. Os caminhos das duas cidades se uniriam na solidariedade à repressão e como cenários de uma luta que se nacionalizou, antes de explodir em manifestações de massa que não se viam no Brasil desde o “Fora, Collor” e que abrigariam uma multiplicidade de pautas que iriam muito além da questão da passagem. Em Porto Alegre, foram cinco grandes protestos ao longo de junho, sempre marcados pela repressão policial e por milhares de pessoas tomando as ruas em manifestações cada vez maiores. A história daqueles dias será contada nas próximas matérias deste especial.
O bloco de volta à rua
A grande questão em torno da luta contra o aumento da passagem é que ela nunca tem fim. Em janeiro de 2014, na iminência de mais um reajuste, o Bloco voltou às ruas. Em 24 de janeiro, mais de mil pessoas protestaram pelo Centro. Os cantos ecoavam 2013. “Somos o povo! E o passe livre, os ricos vão pagar!”, “Eu pago! Não deveria! Transporte público não é mercadoria!”, “Que sacanagem! É o aumento da passagem!” e “Um! Dois! Três! Quatro! Cinco! Mil! Ou param a passagem, ou paramos o Brasil!”. Mas a pauta havia crescido. Também se respirava os ares do “Não vai ter Copa” e a cidade paralisava graças a uma greve de rodoviários em disputa salarial com as empresas. O Bloco encampou a pauta, mas, em abril, a passagem subiu para R$ 2,95.
Contudo, Matheus explica que a conjuntura interna do Bloco já estava diferente. Já não se conseguia mais firmar acordos sobre questões importantes. Uma delas é que uma parcela de movimentos queria abraçar o “Não vai ter Copa”.
Além de motivo de desavenças no interior do bloco, também era algo que impedia a aproximação com os rodoviários grevistas, que então buscavam uma articulação com setores da esquerda. “Eles [os rodoviários] não davam acordo com o ‘Não vai ter Copa’, nem com a presença de mascarados”, diz Matheus.
Olhando para trás, ele avalia que um erro estratégico foi não entender que os movimentos grevistas, como o dos rodoviários, mas que eclodiram em diversas categorias ao largo daquele ano, eram o que havia de mais efervescente na cidade. “Os municipários entraram em greve e faziam assembleias com 2 mil, 3 mil pessoas. Em uma delas, eles votam que não vão fazer ato com o Bloco de Luta. Eu achava que isso era uma derrota muito grande, porque impedia de unificar o Bloco com o movimento real”, diz.
Havia uma potência em curso, mas o Bloco acabou seguindo outro rumo e se isolou. Em seu interior, ainda acreditava-se que era possível “repetir junho”. Esse era o Santo Graal. Mas o contexto já era outro. “O Bloco era um movimento real. Tinha que se manter conectado com os de baixo e com a juventude da classe trabalhadora. O que acontece? Não é que nós deixamos de ser isso, mas o ‘fazer junho de novo’ moveu uma linha política autossuficiente para vários movimentos. A galera acreditava”, diz Matheus.
O peso das urnas
Para além do isolamento, Fetzner avalia que houve uma contaminação do movimento pelo jogo eleitoral. Isso resultaria, por exemplo, na expulsão daqueles ligados ao PT que ainda permaneciam na articulação, como o Kizomba, do qual ele fazia parte. “Passou as férias, chamaram uma reunião no DCE da UFRGS para decidir a expulsão ou não do PT do movimento. Assim como o PSOL e o PSTU queriam tirar o PT dali para poder ser o ‘garoto dos protestos’, sem a sombra do ‘partido da ordem’ eu lembro que tinha correntes do PT que queriam mais era serem expulsas para que o PT fosse vítima e para fortalecer suas candidaturas na eleição”.
Vieram então as eleições. De fato, houve os candidatos de junho. Matheus Gomes foi candidato a deputado estadual pelo PSTU, fez 11.096 votos. Lucas Maróstica fez 5.806 votos na disputa por uma vaga na Câmara Federal. Ele foi candidato pelo PSOL, que reivindicou nacionalmente as Jornadas de Junho. Outros candidatos também reivindicaram a pauta. Nenhum se elegeu no RS.
Processo e criminalização
Outro fator que desmobilizou alguns setores foi a criminalização de militantes. Para alguns membros que estavam na linha de frente da organização do Bloco de Luta, uma das heranças das Jornadas de Junho foi um processo que tramita na Justiça até hoje. Sete pessoas foram indiciadas pelo Ministério Público por crimes de depredação, associação criminosa, expor a vida de outro a perigo, furto e lesão corporal grave. Seis deles eram pessoas ligadas ao Bloco, incluindo Matheus e Maróstica.
Todos eles tiveram suas casas e locais que frequentavam revistados pela polícia em 1º de outubro de 2013. Foram recolhidos documentos, computadores e, à época, chegou a se noticiar até materiais inflamáveis. Nenhuma prova liga diretamente qualquer um deles a crimes praticados, com exceção de um dos jovens, que foi identificado como um suposto líder black bloc e admitiu ter roubado dois secadores de cabelos de uma loja. Os integrantes do Bloco dizem que não conheciam esta pessoa e nunca tiveram relação com ela. Ainda assim, a Polícia Civil atribuiu a eles o “domínio do fato” por terem supostamente instigado outras pessoas a cometerem crimes.
“Nenhum tipo de violência foi deliberado em assembleia”, diz Maróstica. “Isso jamais aconteceu. O processo é absurdo por isso. Mas, também é absurdo porque, se uma ação de violência tivesse sido deliberada, ela seria uma decisão compartilhada por um incontável número de pessoas. Não havia uma presidência, uma coordenação, uma direção, os indivíduos que estavam na assembleia naquela data eram soberanos para decidir qual seria a pauta política, quando seria a agitação, quem faria o panfleto, quem pediria ajuda financeira, quem mobilizaria escolas, universidades. Essas eram as decisões tomadas nas assembleias e, de cada uma delas, participava um número significativo de pessoas”.
Além da confissão de um dos investigados, as provas incluem o depoimento de um policial militar e até uma matéria feita pelo então repórter da Rádio Gaúcha Voltaire Santos, de quando acompanhou, sem se identificar, uma assembleia do Bloco na sede do Sindicato dos Trabalhadores em Empresa de Processamento de Dados (SINDPPD/RS). Em seu depoimento à polícia, em 17 de janeiro de 2014, Voltaire reiterou o que estava na matéria, que, durante a reunião, “nos bastidores foram articuladas ações de vandalismo com depredações e saques a serem realizados durante as manifestações”.
Maróstica conhecia Voltaire da PUCRS e acredita que foi citado na matéria por causa disso. Da mesma forma, os outros nomes que apareciam na reportagem como lideranças seriam o de pessoas que tiveram o nome mencionado na reunião. “Ele me citou na matéria porque me conhecia, porque eu não falei nada naquela assembleia. E o delegado usou a matéria como uma das provas para montar o seu inquérito policial. Por isso que o Voltaire foi chamado para depor, não por livre e espontânea vontade, mas porque o delegado quis usar a matéria dele”, diz.
Matheus Gomes afirma que, antes desse processo, outros já haviam sido abertos para investigar supostos crimes cometidos durante a primeira onda de protestos em 2013. Era apenas a continuidade de uma narrativa que a Polícia Civil buscava fechar para enquadrar militantes do Bloco. “Quando a gente vai responder a esses inquéritos, vemos que já tinha uma pilha de investigação sobre os nossos movimentos que vinha de 2012, 2011, de antes até. Toda uma ficha de quem participava da luta contra a passagem”.
Em setembro de 2016, a juíza Cláudia Sulzbach, da 9° Vara criminal do Foro Central, aceitou a denúncia do Ministério Público, negando a possibilidade de absolvição sumária. Iniciou-se então um processo de audiências para que as testemunhas fossem ouvidas. Até o momento, as testemunhas de acusação seguem depondo, com frequentes faltas dos arrolados. Apenas depois de concluída essa etapa serão ouvidos os indicados pelas defesas.
Murilo concorda que a repressão a 2013 é uma fator que inviabiliza uma reorganização das forças que compõem o Bloco para novas manifestações. “Todo mundo ficou com medo de botar a sua cara limpa na rua, porque sabia que poderia ser criminalizado por isso. ‘Opa, péra aí, acho que aquele tempo de a gente sair de uma assembleia e ir numa festa beber não existe mais. Tá rolando aqui um clima meio 64′”, diz.
Outro fator que ele aponta é o que chama de “neomacarthismo”, isto é, o clima de perseguição social, virtual e até física que passou a vigorar no País depois dos protestos dos “camisas amarelas” de 2015. “Todo mundo que era de esquerda virava petista e, por consequência, corrupto”. Sem falar, é claro, do impeachment e da mudança na conjuntura que levou as esquerdas a encararem a luta contra o golpe e contra as reformas de Temer como prioridade.
Em 2015, a tarifa subiu 30 centavos, para R$ 3,25. Em 2016, 50 centavos, para R$ 3,75, um aumento de mais de 15% em uma só tacada. Novamente, uma ação judicial chegou a suspender o reajuste, mas foi derrubada posteriormente. Em 2017, para R$ 4,05, e, neste ano, R$ 4,30, com a perda de benefícios como a isenção total na segunda passagem em menos de 30 minutos. As manifestações foram ficando menos numerosas e voltaram à casa das centenas até que, em 2018, praticamente inexistiram. O Bloco ainda existe nas redes sociais, mas a unidade de movimentos formada em 2012 já não é mais uma realidade há anos.