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Janot abre processo para avaliar retirada do Caso Kiss da Justiça gaúcha

 

Decididos a não esmorecer na busca por punição aos culpados pela maior tragédia da história do Rio Grande do Sul, os familiares dos 242 mortos na boate Kiss, em Santa Maria, decidiram abrir dois novos fronts na Justiça, em nível federal. Processados pelos próprios promotores que investigaram o caso, pais das vítimas do incêndio de 27 de janeiro de 2013 articularam, nos últimos meses, reuniões em Brasília com o objetivo de retirar da Justiça gaúcha a competência de julgar o caso.

tO primeiro passo para levar a investigação do desastre para a esfera federal foi dado. Foram três encontros entre a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), o primeiro em 3 de maio de 2016, com a presença do procurador-geral, Rodrigo Janot. Após a reunião, foi destacado para o caso o procurador federal Ubiratan Cazetta, do Pará, especialista em casos de equívocos dos ministérios públicos estaduais. Um procedimento preparatório de incidente de deslocamento de competência, termo técnico para a avaliação da retirada do caso da alçada da Justiça do Rio Grande do Sul, foi aberto.

O dispositivo permite ao procurador-geral da República, em casos de grave violação aos direitos humanos ou de incapacidade das autoridades locais para tratar do assunto, solicitar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a competência da Justiça Federal.

Os familiares decidiram procurar Janot depois que promotores de Justiça de Santa Maria passaram a processar quatro pais por calúnia e difamação.

— A reação de Janot foi humana. Ele se colocou no meu lugar. É um absurdo imaginar que os promotores que estão lá na ponta, acusando quatro réus, são os mesmos que estão processando os pais — afirma Paulo Tadeu Nunes de Carvalho, pai de Rafael, 32 anos, morto na Kiss, e um dos articuladores do encontro.

Diretor jurídico da AVTSM, Carvalho foi absolvido em 18 de julho no processo por calúnia e difamação movido pelos promotores Joel Dutra e Mauricio Trevisan, que trabalharam na investigação do incêndio. Outros dois pais, Sérgio Silva, presidente da associação, e o vice, Flávio Silva, são réus porque afixaram cartazes por Santa Maria com o rosto do promotor Ricardo Lozza e a inscrição: "O MP e seus promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular". Antes da tragédia, Lozza descobriu, em inquérito sobre poluição sonora na Kiss, que faltava alvará e propôs termo de ajustamento. O promotor entendeu que houve crime contra sua honra no protesto. Além dos três, Irá Beuren, conhecida como Marta, mãe de Silvio, morto na Kiss, é processada pelo promotor aposentado João Marcos Adede y Castro e seu filho Ricardo Luís Schultz Adede y Castro por danos morais.

Procurador solicitou informações ao MP-RS

A PGR informou que o procurador responsável por analisar a federalização do caso Kiss não irá conceder entrevista, porque o processo está em fase de apuração interna. A procuradoria solicitou oficialmente ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ) e ao MP-RS informações sobre os processos. Em reunião em 5 de abril deste ano com pais, em Brasília, Cazetta teria relatado que o MP gaúcho tem dificultado a entrega de dados sobre o caso, colocando "muitos questionamentos dos motivos e porquês", segundo Carvalho.

O MP-RS afirma que o primeiro pedido de informações chegou em 23 de setembro de 2016. A resposta foi encaminhada para a PGR em 4 de novembro. Conforme a assessoria de imprensa do órgão, não há lentidão no repasse. Em nota, afirma: "Não há nenhuma razão para a federalização. Em relação ao Caso Kiss, o MP-RS tomou, em todas as esferas, as medidas jurídicas cabíveis. A instituição reforça mais uma vez que o momento é de concentrar esforços a fim de assegurar condenação dos denunciados pelos homicídios, pelos crimes militares, nas falsidades ideológicas e na ação de improbidade administrativa". O TJ disse ter repassado informações à PGR em junho deste ano e não se manifestou sobre a possibilidade de federalização.

Em julho do ano passado, a Justiça determinou que os empresários Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira, deverão ir ao tribunal do júri. Cabem recursos. Ao federalizarem o caso, os pais pretendem reabrir a discussão sobre a responsabilidade de agentes públicos (prefeitura, bombeiros e MP estadual), ao permitirem que a Kiss continuasse operando, mesmo depois de terem detectado irregularidades. Os pais também insistem na tese de que o MP-RS foi omisso, como resume Carvalho:

— Todos os entes públicos tiveram processos arquivados pelos promotores.

A boate não era clandestina. E os promotores estão tratando isso como se ela fosse. É difícil conseguir a federalização, mas, para nós, é só uma batalha a mais. A maior batalha que tivemos, já perdemos. Perdemos nossos filhos. Nada, absolutamente nada, vai demover todos esses pais com relação à verdade.

Especialistas veem transferência como remota

Embora admita que, juridicamente, a transferência do caso Kiss para a esfera federal seja possível, o ex-procurador de Justiça e professor de Direito da Unisinos Lenio Streck considera a atitude um erro.

— Não é uma matéria federal. Não vinga e pode mais atrapalhar o processo. Isso não é uma federalização, é "famosização" do caso — critica o especialista.

Outro jurista, Aury Lopes, doutor em Direito Processual Penal e professor da PUCRS, concorda que as chances de êxito são remotas:

— É uma medida excepcionalíssima, na qual tem que ficar demonstrada a omissão, inércia ou incapacidade de o Estado investigar e apurar determinado fato que constitua grave violação de direitos humanos. Não me parece que seja o caso do Rio Grande do Sul, muito longe disso. Eventual insatisfação com o desdobramento de uma investigação ou processo não a justifica — opina.

Pais processados vão recorrer ao STJ

Outra estratégia dos pais para virar o jogo em Brasília deve se materializar nos próximos dias, quando o advogado Pedro Barcellos Jr., que representa Sérgio Silva e Flávio Silva, presidente e vice da associação de familiares de vítimas, irá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) no caso da "exceção da verdade". Ele tenta provar que os pais não caluniaram o promotor Ricardo Lozza, que moveu ação contra a dupla, e que falaram a verdade ao dizer que o Ministério Público sabia do funcionamento irregular da Kiss.

Em 26 de junho, o Tribunal de Justiça (TJ), por 20 votos a dois, rejeitou a "exceção da verdade", julgando argumentos preliminares. A defesa vai usar o peso dos dois votos favoráveis aos pais, dos desembargadores Rui Portanova e Gelson Rolim Stocker, para tentar, em Brasília, fazer com que o tribunal gaúcho julgue o mérito da ação — ou seja, se o MP sabia, de fato, dos problemas da Kiss.

Entenda o pedido

– O Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) está previsto na Constituição a partir de emenda de 30 de dezembro de 2004, conhecida como reforma do Judiciário. O instrumento remete para a Justiça Federal casos de grave violação de direitos humanos.

– A finalidade é assegurar o cumprimento de tratados e convenções internacionais assinados pelo Brasil.

– Para que o IDC possa ser solicitado, devem estar pressupostos os requisitos: grave violação aos direitos humanos; incapacidade das autoridades locais para tratar satisfatoriamente do assunto; e a possibilidade de responsabilização da República Federativa do Brasil caso não reprima o ocorrido. Deve ser pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pelo procurador-geral da República.

– Recentemente, a PGR encaminhou à Corte pedido para que a Polícia Federal (PF) investigue uma chacina ocorrida em São Paulo, durante a onda de violência registrada entre 12 e 20 de maio de 2006. Outro caso famoso ocorreu em 2005, quando o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, solicitou IDC para que o assassinato da religiosa americana Dorothy Stang fosse julgado na esfera federal, mas o STJ rejeitou o pedido. Em 2014, o STJ admitiu o deslocamento de competência na investigação da morte do promotor de Justiça estadual Thiago Faria Soares, no interior de Pernambuco. A Corte entendeu que havia "notório conflito institucional" entre a Polícia Civil e o MP daquele Estado, o que resultou em falhas na investigação.



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