Prisões realizadas nesta terça-feira (23) materializam denúncias de irregularidades na Secretaria de Educação de Porto Alegre
Por Luiz Gomes – Sul21
A ex-secretária de Educação, Sônia da Rosa, está no centro das compras investigadas. | Foto: Paulo Ronaldo Costa/CMPA
A deflagração da Operação Capa Dura, pela Polícia Civil, é mais um passo nas investigações sobre irregularidades em licitações da Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (Smed). A prisão de três agentes públicos e um empresário são a primeira consequência concreta das denúncias que vieram à tona pela imprensa, resultaram em duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) na Câmara de Vereadores e já foram investigadas por uma auditoria interna da Prefeitura e pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). Nesta reportagem, relembramos as principais etapas e desdobramentos do escândalo que envolve a compra de materiais didáticos pela Smed.
O primeiro episódio polêmico envolvendo as compras da Smed foi revelado em dezembro de 2022, pela Matinal, que noticiou a compra de R$ 9 milhões em livros de uma empresa investigada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A compra foi feita por meio de uma modalidade simplificada de licitação, chamada Ata de Registro de Preços, autorizada em 2021 pelo governo estadual de Sergipe. Já em 2023, uma série de denúncias, iniciadas por GZH, apontaram que materiais pedagógicos estavam acumulados, sem uso, em uma série de depósitos e escolas de Porto Alegre.
As denúncias resultaram na queda da secretária municipal de Educação, Sônia da Rosa, que pediu exoneração em junho. A ex-secretária entregou uma carta em que afirmava que o pedido de afastamento buscava permitir “a apuração transparente da destinação dos materiais e equipamentos tecnológicos” comprados pela Prefeitura. Desde então, a posição oficial do governo municipal é de reconhecer a ocorrência de problemas “logísticos e de gestão”, mas negar a ocorrência de fraudes e corrupção.
Na esteira das denúncias, a Câmara Municipal de Porto Alegre instalou, em 7 de agosto, duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) para investigar compras e contratos celebrados pela Secretaria Municipal de Educação a partir de 2021. Uma delas comandada pela minoria da Casa, presidida pela vereadora Mari Pimentel (Novo) e com a relatoria de Roberto Robaina (PSOL), e a outra liderada pela base do governo de Sebastião Melo (MDB). Com ampla maioria nas duas comissões, a base governista interditou os trabalhos até que Robaina fosse retirado da relatoria.
Apesar dos impasses e das tentativas governistas de sabotagem, as CPIs acabaram sendo realizadas, tendo como objeto a investigação de 12 itens:
1) Processo judicial em razão do descaso com o depósito localizado na Estrada de João de Oliveira Remião, nº 5.100, utilizado pela administração como local irregular de descarte de materiais, incluindo nocivos ao meio ambiente;
2) Execução de supostas obras “fantasmas” em escolas municipais, com despesas liberadas de forma “extraordinária”, de vultosos valores;
3) Aquisição, com possível sobrepreço/direcionamento, de 25 mil “Chromebooks” da empresa MICROSENS, pelo valor de R$ 49.600.000,00, através do Pregão 18/2022, em março de 2022;
4) Aquisições, sem licitação, de 368.775 livros da empresa INCA TECNOLOGIA, pelo valor de R$ 21.504.887,16, através de adesão à ata de registro de preços de outro ente localizado no Estado de Sergipe, entre julho e agosto de 2022;
5) Aquisição, sem licitação, de 42.397 livros da empresa MIND LAB DO BRASIL COMÉRCIO DE LIVROS LTDA, pelo valor de R$ 14.446.831,00, em agosto de 2022;
6) Aquisições, sem licitação, de 103.610 livros da empresa SUDU, pelo valor de R$ 8.614.050,55, através de adesão à ata de registro de preços de outro ente localizado no Estado de Minas Gerais, em outubro de 2022;
7) Aquisição, sem licitação, de 400 “MESAS DIGITAIS INTERATIVAS”, da empresa BRINK MOBIL, pelo valor de R$ 10.461.984,00, através de adesão à ata de registro de preços de outro ente localizado no Estado de Minas Gerais, em novembro de 2022;
8) Aquisição, sem licitação, de 188 “TELAS INTERATIVAS”, da empresa SMART TECNOLOGIA, pelo valor de R$ 6.016.000,00, através de adesão à ata de registro de preços do Município de São Leopoldo, em dezembro de 2022;
9) Aquisição, sem licitação, de 942 “CONJUNTOS PEDAGÓGICOS PARA ROBÓTICA” da empresa CONCEITTO, pelo valor de R$ 2.301.300,00, em agosto de 2022;
10) Aquisição, sem licitação, de 57 “MESAS DE PING PONG”, 114 “TABELAS DE BASQUETE”, 114 “KITS TÊNIS DE MESA”, 1995 “COLCHONETES DE ACADEMIA”, 114 “MINITRAVES”, 285 kits de “TACOBAL”, 285 kits de “FRESCOBOL”, 570 “BOLAS DE VOLEI”, 570 “BOLAS DE FUTSAL”, 570 “BOLAS DE INICIAÇÃO”, da empresa WR DISTRIBUIDORA, pelo valor de R$ 808.282,80, através de adesão à ata de registro de preços de outro ente federado (Minas Gerais), em dezembro de 2022;
11) Locação de 236 impressoras, inclusas cópias, impressão e manutenção, da empresa SELBETTI, pelo valor de R$ 599.710,08, em agosto de 2022;
12) Contratação da empresa SLP SERVIÇOS para prestação de serviços contínuos de operação, manutenção preventiva e corretiva nos sistemas, equipamentos e instalações prediais vinculados à Secretaria Municipal de Educação (SMED).
Ao longo dos meses seguintes, os principais suspeitos — agentes públicos ligados à Smed e empresários — foram ouvidos pela CPI e, em 5 de dezembro, um relatório elaborado pelo vereador Mauro Pinheiro (PL) foi aprovado, apontando seis recomendações a serem adotadas pela Prefeitura, mas sem apontar os indícios de fraude e formação de cartel que as investigações teriam revelado.
Por sua vez, Mari Pimentel apresentou um relatório paralelo em que detalha como funcionou o suposto esquema de cartel com compras direcionadas, sem licitação, de mais de R$ 100 milhões realizadas pela Smed, com materiais que ficaram armazenados e sequer chegaram nas escolas. O relatório apontou uma série de nomes de empresários, empresas e funcionários públicos que teriam participado das aquisições irregulares, elencando as relações pessoais e profissionais entre os envolvidos. No centro da investigação está o modelo de compra por meio da adesão de ata de registro de preço – procedimento conhecido como “carona” por acelerar o gasto público dispensando licitação.
Na cronologia dos fatos, Mari afirma que a descoberta de uma fotografia onde o lobista Jailson Ferreira da Silva se reuniu com a cúpula da Prefeitura abriu uma das maiores linhas de investigação da CPI da Educação. Conhecido como “Jajá”, ele é representante comercial das empresas Inca Tecnologia e Astral Científica, comandadas pelo empresário Sérgio Bento de Araújo, e esteve diretamente envolvido em seis das 11 compras investigadas. Entre junho e outubro de 2022, foram mais de R$ 43 milhões recebidos da Prefeitura pela venda de materiais pedagógicos que acabaram estocados em depósitos e escolas da cidade.
Paralelamente às CPIs, a Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria (SMTC) conduziu uma auditoria especial na Smed para apurar a responsabilidade pelo que a Prefeitura chamou de “falhas logísticas e de gestão”. Apresentado em outubro, o relatório final da auditoria identificou a necessidade de correções dos procedimentos de contratação e gerenciamento de estoques e bens das escolas da rede municipal, mas não apontou responsáveis por problemas de gestão.
De acordo com a Prefeitura, após a conclusão dos trabalhos, foram apontadas 56 recomendações à administração municipal, das quais 40 já estariam em implementação, como a instituição de controle sistematizado para a gestão de livros em acervo e materiais e a readequação de processos e fluxos de recebimento, liquidação e encaminhamento para pagamento – ambos pela Smed – e a revisão de instrumentos contratuais por parte da Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (Smap). O resultado das apurações foi remetido ao Ministério Público Estadual (MPE), Tribunal de Contas do Estado (TCE), Ministério Público de Contas (MPC) e Câmara Municipal.
Já em janeiro de 2024, foi divulgado o relatório de auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) que investigou as compras suspeitas pela Smed e concluiu ter havido contratação de empresa inidônea e completa falta de planejamento para a definição dos itens necessários à melhoria do ensino da Capital. O documento sugere a responsabilização de Melo, da ex-secretária de Educação, Sônia da Rosa, e de outras 14 pessoas, além de quatro empresas – Astral Cientifica Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda; Edulab – Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda; Inca Tecnologia de Produtos e Servicos Ltda; e Wr Distribuidora e Industria Textil Ltda. O relatório recomenda ainda a imposição de débito de R$ 6,2 milhões aos responsabilizados, consequência dos possíveis prejuízos causados aos recursos públicos da Prefeitura.
A análise do TCE aponta que as compras suspeitas, em valores totais que ultrapassam R$ 100 milhões, foram realizadas num contexto em que faltam milhares de vagas na educação infantil para crianças de 0 a 5 anos, destacando que a maioria delas são atendidas em condições “nitidamente inferiores em instituições conveniadas, com carências alimentares, de equipamentos e estruturas básicas”.
Questionado sobre o assunto em entrevista exclusiva concedida ao Sul21 na semana passada, o prefeito Melo destacou que a Prefeitura ainda estava em seu prazo para manifestação da defesa e que a matéria ainda precisaria ser julgada pelo TCE. Também afirmou que os apontamentos do TCE teriam como origem a auditoria interna realizada pela Prefeitura.
“Eu acho que a primeira manifestação que eu fiz e vou repetir, eu reconheci e reconheço o problema logístico na Smed. Mas a auditoria que foi produzida por servidores de carreira severíssimos, dentro da Prefeitura, um relatório de 121 páginas, que foi para o Ministério Público, para a Polícia Civil e para o Tribunal de Contas, que está investigando em cima daquele relatório. O relatório não apontou corrupção no governo, apontou exatamente o que eu disse. Talvez tu comprou a quantidade de computadores certa, mas as tomadas que você tinha para instalar os computadores não estavam corretas”, afirmou Melo, tentando minimizar o escândalo que sacudiu seu governo”, disse o prefeito ao Sul21.
Em nota oficial sobre a operação divulgada nesta terça, a Prefeitura de Porto Alegre repetiu o mesmo tom, afirmando que a apuração de ocorrências na Smed iniciou no âmbito Executivo, por determinação do prefeito, em junho do ano passado. “Todas as informações levantadas na auditoria interna foram divididas com os órgãos de controle para aprofundamento das investigações, além da adoção de medidas de reestruturação na operação logística e de aquisições no órgão. A gestão prima pela transparência e lisura na aplicação dos recursos públicos e tem todo o interesse em elucidar os fatos, estando em plena colaboração com as instituições”, diz a manifestação.
A Polícia Civil não confirma oficialmente o nome dos quatro detidos, mas, de acordo com a apuração de GZH, foram a ex-secretária municipal da Educação Sônia da Rosa, a ex-assessora Mabel Luiza Leal Vieira, a ex-coordenadora pedagógica Michele Bartzen e o empresário Jailson Ferreira da Silva.
Além disso, oito servidores tiveram a suspensão do exercício da função pública decretada por 180 dias, bem como 11 empresas e 2 empresários tiveram a suspensão do exercício das atividades econômicas ou financeiras decretada (proibição de contratação com o poder público). Entre os servidores suspensos, de acordo com GZH, está Alexandre Borck, presidente do MDB municipal de Porto Alegre e secretário municipal Extraordinário de Modernização e Gestão de Projetos.
Conduzida pela 1ª Delegacia de Combate à Corrupção do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), as investigações que resultaram na Operação Capa Dura abordam cinco atas de registro de preços, na modalidade adesão/carona de editais do estado de Sergipe, as quais resultaram na aquisição de 544 mil livros e um custo de R$ 34 milhões ao Município. A Polícia Civil apura se empresas foram beneficiadas para vencer os objetos dos contratos mediante conluio entre as empresas concorrentes, por meio de propostas previamente combinadas. Quatro desses procedimentos foram vencidos por uma empresa sediada em Curitiba, no Paraná, cujo o representante autorizado teve reuniões prévias com funcionários da Smed. Durante a investigação, foram angariados elementos que indicavam práticas de direcionamento e frustração de caráter competitivo da concorrência para beneficiar as empresas.
Em conversa com o Sul21 nesta terça-feira, Mari Pimentel avaliou que a Operação Capa Dura foi muito importante para validar as denúncias que vinham sendo feitas. “Desde o início, nós estivemos junto com os órgãos de fiscalização, em mais de um momento eu estive junto também aos órgãos de fiscalização compartilhando documentos, ajudando com depoimentos. Desde o início, a CPI se propôs a trabalhar em conjunto com os órgãos de fiscalização, entendendo das limitações do parlamento e entendendo a atuação de cada um dos órgãos. Então, hoje, com essas buscas e apreensões e também com acesso aos materiais que agora a Polícia pode ter através dos interrogatórios, eu tenho certeza que a gente consegue evoluir cada vez mais para desvendar essa situação das irregularidades da Smed. O que já está dado é o que nós trouxemos no relatório paralelo que eu apresentei da CPI, fraude em licitação, isso é crime, isso incorre em pena de prisão, e a formação de cartel. Nós temos essa situação sendo já dada e agora é entender os motivos e se houve algum benefício financeiro para os agentes que atuaram para fazer esse cartel e forjar as licitações que aconteceram”, disse.
Contudo, a vereadora disse esperar novos desdobramentos das investigações policiais, uma vez que nem todos os itens investigados pelas CPIs foram alvo da Operação Capa Dura até o momento. “Nós temos mais itens que também foram comprados com irregularidades, com as mesmas caronas, que as próprias testemunhas que hoje estão sendo ouvidas despacharam e que a gente sabe que teve envolvimento também para beneficiar outros grupos. Então, hoje nós tivemos um primeiro empresário envolvido, o senhor Jailson, mas eu acredito que os outros itens também demandam a devida investigação e a Polícia deve também trazer maiores aprofundamento da investigação”, complementou.
Para Robaina, o avanço das investigações também é resultado do trabalho desenvolvido pelos vereadores nas CPIs, mesmo com as tentativas de abafamento por parte da base governista.
“Nós fizemos um trabalho que, de certa forma, foi uma aliança com a Mari Pimentel e, quando ela indicou o meu nome como relator, a gente já estava trabalhando junto na investigação. O governo não aceitou a minha relatoria porque sabia que tinha muita coisa para esconder. Apesar disso, nós seguimos trabalhando e se conseguiu ter muita prova documental. E isso também estimulou, primeiro o Tribunal de Contas, e depois a Polícia a investigar. Não é à toa que os presos são justamente os que nós tínhamos apontado como os funcionários públicos e os empresários que estavam atuando de modo incorreto, inclusive o presidente da MDB. Claro, a investigação tem que seguir, mas o que ficou evidente nesse processo todo é que os indícios de corrupção que nós apontávamos, que inclusive levaram o prefeito a tentar nos intimidar com tentativas de processo judicial, eram muito fortes, tinha muitos indícios verdadeiros”, afirma.