Candidato bolsonarista ao governo do Distrito Federal pelo PRP em 2018, o general da reserva Paulo Chagas foi apoiador de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro, mas hoje considera o ex-aliado um deslumbrado com o poder. “O caminho correto seria o presidente baixar a bola e entender qual é a missão dele”, disse o militar em entrevista ao Estadão/Broadcast.
Para Chagas, ministros deveriam conversar com Bolsonaro na busca de arrefecer os ânimos a fim de evitar um eventual impeachment. Segundo ele, se ficar “cada um caladinho, cuidando do seu quadradinho”, o governo será paralisado.
O general diz ainda que o “negacionismo” do governo em relação à pandemia agravou a situação e que é preciso “uma dose de humildade muito grande” para reconhecer o erro. “É um absurdo que o presidente venha ‘mimimizar’ um problema como esse”, disse.
Em postagem no Twitter, no fim de semana, Chagas rebate quem o critica por se voltar contra o presidente e relata ter perdido seguidores por isso. “Há quem diga que não devo criticar o presidente Bolsonaro porque não temos outro capaz de liderar a direita. Ora, se entre 200 milhões de brasileiros só encontramos um narcisista deslumbrado, trapalhão e que não cumpre o q promete para nos liderar, é porque a direita não está preparada para mudar o Brasil!”, postou ele no sábado.
O sr. apoiou o presidente Jair Bolsonaro, foi o candidato dele ao governo do Distrito Federal. Mas desde o primeiro ano do governo adotou uma postura mais crítica. O que mudou?
O que mudou foi o próprio presidente. Ou não mudou. Durante a campanha eu defendi a pessoa, até a maneira de ele ser, se comportar, as atitudes mais intempestivas. Dizia que fazia parte da imagem dele, mas como deputado. Quando for presidente vai mudar, tudo que falar vai repercutir, as coisas têm que tomar o rumo da harmonia, da União, não da divisão. Mas ninguém na volta dele conseguiu convencer. Ele assumiu, e alguém soprou no ouvido dele que não precisava mudar. Se eu estivesse fazendo parte do governo, eu diria isso para ele, mas nunca fiz parte nem nunca pedi para fazer. À medida que as coisas foram perdendo o rumo, e a própria personalidade do presidente foi tomando conta dele, aí começou a crítica. Se você começa de uma forma mais sutil e não surte efeito, vai aumentando até chegar uma hora em que você perde a censura. Acho que é a fase em que estou entrando agora (risos).
O sr. escreveu no último sábado que Bolsonaro é um “narcisista deslumbrado” e um “trapalhão que não cumpre o que promete”. O que credencia o presidente a esses títulos?
Deslumbrado com o poder, não tenho dúvida de que ele está, em que pese não ser só ele. Vemos os ministros da Suprema Corte também exacerbando o poder que têm, e o próprio Congresso. Os poderes estão se imbricando, um engole um pedacinho do outro. Está faltando harmonização. Mas quando falo do narcisista deslumbrado é porque ele, tanto quanto outros, está deslumbrado com o poder que tem, com a popularidade que tem e nunca teve. É um deslumbramento que faz com que ele se comporte pensando que é mais do que é na verdade. Veja esse negócio da rachadinha (investigação que tem como um dos alvos o senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente). Fica bem claro que está querendo esconder. O que falta é humildade. O ser humano é falho, se tivesse desde o início falado desse negócio e deixado que a Justiça tomasse conta. Não, fica tentando negar uma coisa que é evidente. É só uma questão de tempo para provar, e ele colocando obstáculos na comprovação disso vai prejudicá-lo muito mais. Tudo que ele falou vai por água abaixo quando a polícia chegar à conclusão.
O caso da rachadinha teve um revés no STJ recentemente. O sr. acha que mesmo assim, quem eventualmente for culpado ou não, isso virá à tona?
Mais cedo ou mais tarde. O empenho é que seja mais tarde, mas não tenho dúvida que isso vai aparecer. Mesmo sendo o mais bolsonarista dos bolsonaristas, você não pode admitir um crime para beneficiar quem quer que seja. É imoral.
O sr. falou que há uma exacerbação não só do presidente, mas também do outro lado da Praça dos Três Poderes. De quem deveria ser o primeiro passo no sentido de acalmar os ânimos?
Olha, agora vai ser difícil. Quem tem que dar uma palavra nisso é o próprio povo, começar pressionando o Congresso a tomar uma atitude na direção correta. Em princípio, para mim, (em relação a) os ministros da Suprema Corte. Se colocar para funcionar aquela CPI da Lava Toga, naturalmente cada um vai subir para o seu galho. Quem tem que fazer isso é o Senado. E quem tem que pressionar para isso? O povo. Ah, mas aí a Suprema Corte também põe pressão no Senado… Se tiver que botar meia dúzia, uma dúzia ou metade do Senado na cadeia, põe. Mas o caminho é esse. Eu fui incluído nesse inquérito do fim do mundo, do Alexandre de Moraes e do (Dias) Toffoli (Chagas é um dos investigados no inquérito das fake news). Numa postagem, eu falei, no sentido de um conselho, que se não tivesse uma revisão da maneira de proceder, eles iam acabar tendo que ser chamados a um tribunal de exceção. Um tribunal de exceção é um tribunal ad hoc (para o ato), que é o Senado. É o tribunal constitucional para julgar esse caso.
Em relação à exacerbação no Executivo, chegou-se a falar de impeachment. Seria o momento?
Se para cada problema a gente ficar com esse negócio de impeachment, o Brasil não sai do lugar. Já tivemos dois impeachments em curto espaço de tempo. Temos de serenar, amadurecer. O caminho correto seria o presidente baixar a bola e entender qual é a missão dele. Alguém que tivesse influência real sobre ele chegar e dizer: “Olha, a partir de agora, tem que fazer assim”. (Bolsonaro) Tem uma compulsão a dizer impropérios. Fica sempre instigando, não para nunca a briga. Alguém tem que ter humildade para parar essa briga. Não vejo o impeachment como uma boa solução, porque vamos ter que parar o Brasil. Mas, dependendo do rumo que as coisas tomarem, é uma solução também. Não vejo como a melhor.
Quem poderia ser a pessoa para dizer ao presidente que o caminho correto é baixar a bola?
Dentro do Palácio, tem duas assessorias: uma racional e outra fanática e irracional. O chamado “gabinete do ódio” ele não pode ouvir, vão dizer “fecha tudo”. Há a ilusão de que os militares vão apoiar um golpe, é uma ilusão. O presidente inclusive procura passar essa imagem, de que os militares estão do lado dele. Sim, estão do lado dele tanto quanto estiveram do lado da Dilma (Rousseff), do Lula e de todos os presidentes. A outra, que é a assessoria racional, são os ministros competentes que ele tem. (O que deveria ser feito é) Reúne os ministérios e fala com o presidente. Ora, (se ficar) cada um caladinho, cuidando do seu quadradinho, vai chegar uma hora em que o governo vai parar porque vai acontecer esse impeachment, que é a pior coisa que pode acontecer, mas pode acontecer. Para segurar, (tem que) dizer “vamos abaixar a bola, vamos contornar, reunir, conversar”. Tem que ter pessoas de bom senso, e vejo dentro do governo ministros de altíssimo nível. Eu tiro desse time de craques o nosso ministro das Relações Exteriores. É um sujeito desequilibrado.
Qual é sua avaliação sobre o desempenho do governo na gestão da crise do novo coronavírus, inclusive na compra de vacinas?
O erro começou logo no começo, o presidente não quis assumir a coordenação nacional da crise, traçar um plano e seguir esse planejamento. O presidente negou, (adotou) o negacionismo, “é uma gripezinha”, deixou passar, as coisas foram se agravando. Os prefeitos e governadores foram sendo cobrados, vendo as pessoas ficarem doentes, morrendo. Cada um tomou um rumo. Agora, a gente vê uma tentativa para assumir o controle, mas a impressão que tenho é que é tarde. Ele precisa de uma dose de humildade muito grande para admitir que se equivocou, que deveria ter feito e não fez. Estamos vendo hoje de que fato era grave, jamais foi uma gripezinha. Eu acho o fim da picada, no século XXI, a gente ainda achar que existem pessoas que são enviadas de Deus e são tratadas como mito. Mito pode também ser chamado de mentira, de ilusão. Desde o início me manifestei contra, o presidente não devia estimular isso, porque é um presidente, não um milagreiro.
O sr. acha que vacinação contra covid-19 precisa ser obrigatória?
O que tem que ser feito é uma campanha, como eu vi na Globo, “vacina sim”. As pessoas têm que entender que, se você está vacinado, não está transmitindo o vírus para ninguém. Agora, não pode ser obrigado. Eu julgo que todos deveriam se vacinar, mas não pode obrigar. O governo tem que estimular as pessoas, mostrar por que todos devem se vacinar.
No dia em que o País bateu recorde no número de óbitos, o presidente criticou as medidas restritivas e disse “chega de frescura, de mimimi”. O que o sr. acha dessa declaração?
Acho um absurdo. Um absurdo que o presidente venha ‘mimimizar’ um problema como esse, que está mais do que caracterizado no mundo inteiro que é gravíssimo. Ele chega e diz que não é nada, “é mimimi, vamos acabar com a frescura”. Não é esse o papel dele, ele não tem que ter posição radical. Tem que ter uma posição conciliadora, uma posição científica, ouvir as pessoas que sabem, cientistas, médicos. Esse é um problema de saúde, não é um problema político, nem um problema econômico.
A questão que o presidente coloca, de ter que conciliar saúde com economia, é um falso dilema?
Não é um falso dilema. É isso mesmo tem que acontecer. Mas primeiro tem que resolver o problema da saúde. Estruturar o País para a pior hipótese. Para isso tem os médicos, os cientistas, os infectologistas, pessoas que entendem disso. Logicamente tem que ter um momento de “lockdown”. E em todos os momentos (precisamos da) comunicação social para que todos saibam o perigo que estão correndo. (É preciso) Haver uma palavra só sobre isso, e não várias. Depois que a parte da saúde estiver sendo controlada, vai abrindo a parte da economia.
O presidente é muito crítico a essas medidas restritivas.
É uma crítica que ele tira intuitivamente não sei de onde. Não podemos ser governados por intuição, temos que ser governados racionalmente.
O ministro Eduardo Pazuello está sendo investigado por causa da crise do oxigênio em Manaus. O sr. acredita que ele foi omisso?
Não acredito que ele tenha sido omisso nesse caso. Acho que ele disse “olha, mandei o dinheiro para lá, eles têm o planejamento, se a imprensa está dizendo que vai faltar é lógico que o povo de lá está sabendo disso, ainda tem uma recomendação da Suprema Corte de que nós não temos que interferir no que eles estão fazendo, então vamos ficar esperando”. Ele apostou no bom senso, na inteligência, na responsabilidade do governador. E no final não houve, e deu no que deu. Mas não chamo de omissão.
O próprio STF esclareceu que a decisão não foi no sentido de o governo federal não poder agir, mas de dar autonomia para que Estados e municípios pudessem agir sem o governo federal. Nesse sentido, o ministro Pazuello poderia ter agido mais cedo?
Sim, poderia. Ele tinha todos os dados para agir mais cedo. Mas aí entra uma decisão: vou agir mais cedo ou vou deixar por conta deles? Já tinha um responsável. Agora, no momento em que houve o problema, se criou a crise, o governo federal agiu, o Ministério da Saúde colocou a FAB para levar oxigênio.
Há desconforto dos militares com a permanência do general Eduardo Pazuello como ministro estando na ativa?
Há sim. Ainda mais o Pazuello, que está no final da carreira, já atingiu o último posto. Era natural que ele, ao ser ministro, que é muito mais do que general de divisão, passasse para a reserva, como fez o Ramos (Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo). É um desconforto porque isso está ligado àquela tentativa do presidente de associar Forças Armadas ao governo dele, como se ele tivesse apoiado institucionalmente. As Forças Armadas, como instituição, fazem o que está na Constituição.
A tentativa do presidente de atrelar seu governo às Forças Armadas traz desgaste?
Sim, para a imagem das Forças Armadas perante a sociedade. Se der certo, vira herói, se der errado, vira bandido. Nós não temos nada a ver com isso. Mas até você explicar que jacaré não é cobra, quanto tempo demora?
O sr. escreveu em novembro que o governo tem pouco tempo para recuperar o espaço perdido com “chorumelas e filhotismos”. O senador Flavio Bolsonaro acaba de adquirir uma mansão de R$ 6 milhões, com um empréstimo em condições mais favoráveis que as de mercado. Esse episódio é exemplo disso que o sr. comentou?
Isso é um tiro no pé, uma bobagem sem tamanho. Ele podia comprar essa mansão depois. No meio dessa poeira, desse fogaréu, ele vai lá e compra uma mansão que a gente vai, faz a conta e não cabe no orçamento dele. É lógico que, se ele pagou, tinha dinheiro para pagar. Agora, vai ter que provar que não teve nenhuma falcatrua. Tomara que prove, né?
O sr. também criticou o que classificou de “populismos raivosos e demagógicos”. Qual seria um exemplo?
Você está vendo exemplo todos os dias. O presidente vive disso, ele continua sendo deputado. Como deputado, era cheio de impropérios, tinha um milhão e meio de pessoas no Rio de Janeiro que queriam ouvir isso dele. Essas pessoas continuam aplaudindo, mais outros tantos desses 57 milhões que votaram nele. No meu entendimento, esse número já diminuiu. Já diminuiu pelo menos o de um, porque eu não voto mais.
O sr. incluiria a questão do preço diesel nesse populismo demagógico?
Sim. Ele intempestivamente está dizendo coisas que como presidente não poderia dizer, porque tem repercussão nacional e internacional. No momento em que ele disse que era contra (o aumento), que ia intervir na Petrobras, as ações começaram a cair. Tem que saber o que dizer, tem que saber quando não dizer, e ele não sabe. Mas isso aí agrada muita gente, né? Ele só não sabe que não agrada aos 57 (milhões), é bem menos. Ele se prejudica.
Até que ponto o apoio de Bolsonaro à agenda liberal não foi só uma fantasia?
O apoio dele não foi uma fantasia. Ele apoiou aquilo que ele estava entendendo que era. Ele nunca soube direito o que era liberalismo. Está aprendendo agora, aos poucos, e aprende só o que ele quer, porque está mais preocupado com a reeleição, e no liberalismo não tem populismo.
Em 2022, o sr. disse que seu voto Bolsonaro não terá. Da mesma maneira, o apoio de outros integrantes das Forças Armadas definhou?
Politicamente, eleitoralmente, o presidente se desgastou e perdeu a confiança de muita gente, incluindo militares. Tenho sido criticado por companheiros, acham que não devo criticar o presidente porque só temos ele. Mas não é possível que, em 200 milhões de brasileiros, só tem um que seja capaz de liderar e representar a direita liberal e conservadora, ainda mais um que está provado que não sabe bem o que é liberalismo, o que é conservadorismo. Se fizer pesquisa nos posicionamentos do deputado Jair Bolsonaro, tem um lado mais socialista na economia do que liberal. Ele é ideologicamente de direita, contra a esquerda, mas na área da economia é estatizante.
O presidente disse recentemente que, se tudo dependesse dele, o País não viveria sob o regime que vive hoje e que, apesar de tudo, ele representa a democracia no Brasil. O sr. vê risco de uma guinada antidemocrática?
Não. Qualquer guinada antidemocrática precisa de Força Armada, e as Forças Armadas não vão apoiar nenhuma aventura não democrática. Para que haja uma intervenção, vai ser no sentido como disse o general (Eduardo) Villas Bôas algumas vezes, o (vice-presidente Hamilton) Mourão falou, de um processo de anomia. Uma circunstância em que você não sabe mais quem está mandando, uma “degringolação” total da lei e da ordem, da harmonia dentro do País. Então alguém tem que botar ordem. Quem? Quem tem a força. Mas isso não vai mudar o regime, é um freio de arrumação.
O Brasil se aproxima dessa necessidade de um freio de arrumação?
Não. Começamos nossa conversa falando que vivemos um momento em que os limites não estão sendo respeitados pelos próprios poderes. Vemos que o STF está saindo dos limites dele. A exacerbação disso vai dar no entrechoque dos poderes, e está escrito na Constituição que eles têm que ser independentes e harmônicos. No momento que um mete a mão (no outro), estamos caminhando para um processo desse tipo, mas eu não acredito que o bom senso não prevaleça. Tudo tem limite, então de repente vamos parar, pensar. Eu não acredito que falte inteligência para as pessoas. Pode faltar honestidade, mas não inteligência.
Estadão