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“Foi um claro atentado contra a vida”, diz delegada de Rio Grande sobre ordem de juíza para soltar réu que atirou contra policial

Lígia Furlanetto afirma que, para além da indignação, sentimento é de tristeza. Integrantes da Polícia Civil esperam que decisão seja revisada pelo TJ-RS



Ação em que policial foi baleada na cabeça ocorreu em abril de 2022, em Rio Grande

A decisão da Justiça de Rio Grande, no sul do RS, que mandou soltar o homem que baleou uma policial civil com um tiro na cabeça no ano passado, indignou forças de segurança do Estado, em especial colegas de corporação e amigos da vítima, Laline Almeida Larratea, 36 anos. Entre os agentes que atuam no município, o tom é de incredulidade e revolta.

Na decisão da 1ª Vara Criminal da Comarca de Rio Grande, a juíza Paula Cardoso Esteves revogou a prisão preventiva de Anderson Fernandes Lemos, 40 anos, por entender que não há elementos suficientes que comprovem que ele, ao efetuar disparos contra policiais, tenha tido a intenção de matá-los “e não de apenas resistir à abordagem”. Assim, a magistrada desclassificou a acusação por seis tentativas de homicídio, feita pelo Ministério Público do Estado (MP/RS), para o crime de resistência à abordagem, e determinou a soltura do réu. Com a alteração, o homem não foi submetido a júri, onde são julgados crimes dolosos contra a vida, sejam tentados ou consumados. Apesar de ter sido solto neste processo, o homem segue preso por envolvimento em outros crimes, segundo a Polícia Civil.

Delegada regional da Polícia Civil de Rio Grande, Ligia Furlanetto afirma que, para além da indignação, o entendimento da Justiça causa tristeza. Para ela e demais integrantes da corporação ouvidos pela reportagem, é preciso que a decisão seja revista pelo Tribunal de Justiça — o MP informou que entrou com recurso. Apesar de a decisão ser de 28 de abril deste ano, o caso gerou repercussão nesta sexta-feira (23).

— A sensação é de que essa decisão acaba nos matando um pouco. Mata nosso ímpeto de trabalhar por uma causa maior, de proteger a integridade física das pessoas. Uma policial, mulher, mãe, sai de madrugada, deixa a filha com a vó em casa, dormindo, para ir desenvolver sua missão. Então, é atingida na cabeça, e o Judiciário entende que isso não foi uma afronta contra a vida, mas um mero crime de resistência. É mais do que indignação, nos causa tristeza e decepção — lamenta Ligia.

A delegada regional explica que a ação, realizada em abril do ano passado, se deu em um contexto de disputa entre facções que atuam no tráfico de drogas em Rio Grande. Na ocasião, as equipes da polícia foram até a casa de Lemos para cumprir mandado de prisão contra ele e de busca e apreensão em sua residência. Ao perceber que um grupo de pessoas adentrava a residência, o réu passou a atirar. Em depoimento no processo, ele admitiu que efetuou disparos, mas disse que não percebeu que se tratavam de policiais. Sustentou que vinha recebendo ameaças de um grupo criminoso da região, que tentaria tomar sua casa, e por isso revidou.

No entanto, Ligia enfatiza que as equipes que participaram da ação seguiram o protocolo previsto para abordagens do tipo: estavam identificadas ao chegarem à casa do réu, e deram comando de voz anunciando a entrada de policiais.

— Neste contexto de entrada ostensiva da polícia, o então investigado começou a desferir disparos de arma de fogo. Em relação à conduta do réu, não há como fugir do dolo (intenção) de matar. Mesmo que ele alegue ter achado que estavam atirando contra indivíduos de uma facção contrária, ele assumiu o risco de atingir quem quer que fosse, inclusive terceiros que estivessem ali perto. Foi um claro atentado contra a vida, e não um caso de resistência contra a administração pública. É algo incomparável — avalia Ligia, que afirma respeitar a decisão, mas aguarda que seja reformada.

O Ministério Público do Estado (MP/RS) afirmou que entrou com recurso contra a decisão, na tentativa de fazer com que o réu responda pelas seis tentativas de crime doloso contra a vida, conforme foi denunciado, no Tribunal do Júri.

Policial perdeu parte da memória

Após ser baleada, Laline foi socorrida por colegas e levada ao hospital. Ela passou cerca de um mês internada, 15 deles na UTI, e chegou a entrar em coma.

Segundo a Polícia Civil, o disparo atingiu uma parte do cérebro que é responsável por processar memórias e sentimentos. Em depoimento no processo, a policial contou que perdeu memórias, inclusive experiências vividas com a filha, de três anos. Em razão disso, relata que se afastou “bastante” da criança e do marido, também policial civil — o companheiro também atuava na operação no dia em que a vítima foi baleada, mas cumpria ordens judiciais em outro local do município.

A sensação é de que essa decisão acaba nos matando um pouco. Mata nosso ímpeto de trabalhar por uma causa maior, de proteger a integridade física das pessoas.

LIGIA FURLANETTO

Delegada regional da Polícia Civil de Rio Grande

— Na minha perspectiva de mãe, essa é uma das piores coisas que poderia acontecer. Ela perdeu memórias afetivas de coisas que viveu, que passou com a filha, com o marido, com a família. Fisicamente está bem, lembra dos colegas de trabalho, conversa normalmente. Mas, de outras experiências, lembra muito pouco. No processo mesmo ela relatou que se afastou muito da filha e do companheiro. E posso atestar o quanto foi e é uma mãe maravilhosa, uma excelente servidora, umas das melhores policiais da delegacia. É muito triste saber que precisa enfrentar tudo isto — relata Ligia, acrescentando que, por decisão médica e da família, a policial não retomou as atividades na corporação.

Manifestação

Após a divulgação da decisão, o Ugeirm, sindicato que representa escrivães, inspetores e investigadores da Polícia Civil do RS, manifestou revolta e apontou “falta de sensibilidade” por parte do Judiciário.

“Infelizmente, essa é a realidade que os policiais civis gaúchos enfrentam no seu cotidiano. Quando o próprio Judiciário não se coloca ao lado dos profissionais que arriscam as suas vidas para garantir a segurança da população, a sensação é de abandono total. (…) Policiais civis têm de lidar com a falta de sensibilidade do Judiciário, que manda soltar um criminoso que desfere uma série de tiros contra policiais que estavam cumprindo uma ordem expedida por esse mesmo Judiciário”, diz nota da entidade.

Em repúdio à decisão, o presidente do sindicato, Isaac Ortiz, afirmou que a entidade organiza um protesto em frente ao fórum de Rio Grande na próxima quarta-feira (28), à tarde.

A Associação dos Delegados de Polícia do RS (Asdep) também se manifestou, pontuando que, “ainda que se deva respeitar toda e qualquer deliberação judicial, não é possível concordar com decisões absurdas como a ocorrida neste caso”.

“A sentença prolatada representa uma preocupante inversão de valores e demonstra total falta de respeito para com os policiais e toda a sociedade do Rio Grande do Sul, na medida em que terminam servindo como estímulo a prática de atos semelhantes e reforçam o sentimento de impunidade que, infelizmente é uma realidade em nosso país. Decisões como essa, na verdade, se constituem em um lamentável desserviço que choca a todos e desestimula o trabalho daqueles que são responsáveis pela segurança pública da população”, disse a entidade em nota.

A Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) também enviou texto à reportagem no qual diz que “bem como sua seccional do estado do Rio Grande do Sul, recebeu com preocupação as notícias relacionadas à sentença judicial que desclassificou a imputação de crime de homicídio ao atentado a Policiais Civis no estado”. A nota acrescenta que a entidade “espera que o Poder Judiciário reforme a sentença, sob pena de o julgado servir e consolidar, doravante, notória carta branca apta a justificar que criminosos recebam com violência quaisquer agentes públicos de quaisquer dos Poderes constituídos, maculando assim o legítimo agir estatal, o interesse das sociedades gaúcha e brasileira e também colocando em risco cada vez maior as vidas de trabalhadores da segurança pública”.

Contraponto

A advogada Julieth Gonçalves dos Santos, que atende Lemos, enviou nota à reportagem. Veja a íntegra do texto:

“Pelo contrário, a decisão da Juíza Paula Cardoso da 1ª VC foi a assertiva. Desde a primeira oportunidade em que teve de se manifestar o acusado falou a verdade, sendo categórico disse: ‘(…) quantos aos motivos pelos quais o levaram a reagir com disparos durante a ação policial, relata que achou que se tratava de uma execução a qual foi vítima em três tentativas ocorridas dias antes da chegada da Pol. Civil ir em sua residência. Somente fez os disparos pois acreditava que eram as mesmas pessoas que atentaram contra sua vida e de seus familiares. Que sobre esses eventos anteriores não chegou a fazer o devido registro de ocorrência policial, pois temia sair de casa e ser morto, pois é bastante conhecido nos arredores e alguém poderia estar lhe vigiando’.

No mesmo sentido do depoimento do acusado é a prova pericial do IGP, que comprava que a residência possuía inúmeros disparos de arma de fogo. Em uma das oportunidades, sua filha foi baleada na coluna e há prova pericial no tocante à lesão. Cumpre ressaltar que, já preso, cerca de 30 dias após o fato, sua casa foi alvo novamente de criminosos, com mais de 30 disparos em direção ao imóvel.

No dia dos fatos, de acordo com o depoimento dos Pol. Civis no momento do ocorrido, tão logo o réu tomou conhecimento que eram policiais civis, se rendeu, dispensou a arma que ainda possui 6 munições intactas e jogou-se ao solo sendo imediatamente preso.

A testemunha de Defesa, o Pol. Civil ouvido em juízo, declarou já ter prendido o réu pela primeira vez em setembro de 2016, depois janeiro de 2021 – ambas por tráfico de drogas – e em setembro de 2021 por receptação. Afirmou que: “(…) a prisão por receptação ocorreu em contexto de cumprimento de mandado de busca e apreensão; a de setembro de 2021 em uma abordagem na entrada no Cassino; e, em 2016, não se recordou das circunstâncias. Referiu que o acusado respondeu aos comandos policiais quando foi preso e não reagiu’.

No dia dos acontecimentos, o acusado, desde da sede policial até o interrogatório frente ao juízo, apresentou versão dos fatos idêntica à dos policiais que cumpriram mandado de busca e apreensão. Confessou que efetuou disparos, todavia, não possuía ciência que se tratavam de policiais em cumprimento de MBA, tanto é que na ocasião restou apreendida tão comente a arma de fogo que portava e nada mais de ilícito, diante disso, não havia justificativa para atentar contra a vida de policiais civis no exercício de sua função, pelo contrário, ouvido em juízo, um dos Pol. Civil, testemunha de acusação, o mesmo foi categórico ao referir: ” (…) Que já cumpriram diversas vezes Mandados de Busca e Apreensão em oportunidades anteriores, já sendo conhecido da equipe, que o acusado não reagiu em abordagens anteriores’.

Importante ressaltar que ao final do seu interrogatório em juízo o réu pediu perdão à vítima, pois ela era uma inocente que estava cumprindo o papel dela e não merecia ter passado por isso, então pediu encarecidamente desculpa por tudo e que caso ela não o perdoasse o mesmo a compreenderia, mais uma vez, encerrou informando que não tinha conhecimento que eram policiais no momento que ingressaram no pátio de sua residência e que somente atirou pois tinha certeza que eram os mesmos criminosos que atentaram contra a sua vida e de familiares”.

Ajuris também se manifesta

Em nota divulgada no sábado (24), a Associação dos Juízes do RS (Ajuris) ressaltou  que “acompanha os desdobramentos da decisão judicial envolvendo a concessão de liberdade para um acusado de ter atirado contra agentes policiais durante uma operação da corporação, na cidade de Rio Grande”.  A entidade pediu equilíbrio nas críticas a juíza do caso, destacando que “não é aceitável que o episódio ultrapasse os autos do processo, que ainda tramita, e sirva como instrumento de desqualificação das magistradas e magistrados gaúchos, não raro, visando atingir a independência judicial”.

“A Ajuris reitera o irrestrito respeito às instituições que integram o Sistema de Justiça e a permanente abertura ao diálogo, mas reafirma que não deixará de adotar todas as medidas cabíveis em relação à violação dos direitos das magistradas e magistrados gaúchos”, encerra o texto, que é assinado pelo presidente da entidade, Cláudio Martinewski.

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