Pai de Bernardo falou a ZH na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc)
07/06/2014 | 12h31
O cirugião Leandro Boldrini, 39 anos, nega ser o mentor da morte do filho,Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos. Com o olhar parado, quase sem expressão, 10 quilos mais magro do que quando foi preso, em 14 de abril, diz estar vivendo um pesadelo acordado.
Mesmo com doses de Rivotril, sofre de insônia na cela que ocupa no setor de triagem da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). À noite, ocupa o tempo lendo romances, suspense, psicologia e auto-ajuda. Quatro dias por semana, as mãos de pele clara que nos últimos 10 anos conduziram o bisturi em cirurgias no Hospital de Três Passos empunham pincel: ele trabalha pintando as paredes de uma sala da prisão.
— É bom para ocupar o tempo — diz.
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Isolado do contato com outros presos para sua própria segurança — já que crimes envolvendo crianças são especialmente refutados por criminosos —, ele também toma horas diárias de sol no pátio da prisão. Boldrini não demonstra emoções e admite não saber fazer isso: fala da morte do filho, de trabalho, de família, sempre no mesmo tom. Mesmo quando diz que jamais perdoará a mulher, Graciele Ugulini, acusada de assassinar Bernardo, a fala é diplomática, sem indignação.
Na última quinta-feira, durante duas horas, Zero Hora conversou com Boldrini na Pasc. Na presença do seu advogado, Jader Marques, o médico não hesitou nas respostas. Chegou a afirmar que sua personalidade e jeito de ser contribuíram para a tragédia. Confira trechos da entrevista:
Qual seu envolvimento com o sumiço e a morte de seu filho Bernardo?
Não tenho nenhum envolvimento. A última imagem que tenho dele é daquela sexta-feira (4 de abril) em que ele estava feliz, contente porque ia ganhar uma televisão. Essa televisão, provavelmente, tinha sido prometida para ele pela Graciele, tanto que ele tinha contado para os coleguinhas da escola que ia ganhar. Não tenho envolvimento. Achei que as coisas estavam melhorando depois daquela entrevista com o juiz e a promotora para ver a questão do Bernardo. Pensei: as coisas estão melhorando, o guri está faceiro, a coisa está indo bem, se desenvolvendo de uma maneira para dar certo. Era o que eu queria, que todo mundo esperava, que o Bernardo…O que ele foi pedir lá, mais carinho, mais atenção, enfim, isso aí estava dando resultado prático.
Ele ia ganhar a TV ou um aquário. A polícia disse que ele saiu com a Graciele porque acreditava que buscaria o aquário que tanto queria.
É difícil precisar se foi por causa da TV ou do aquário, mas o Bernardo estava contente, alegre, eufórico, repetiu o almoço, gostou do peixe. Era uma somação de coisas, era o aquário que ele ia ganhar, era a TV. Uma criança de 11 anos é fácil de manipular.
A polícia e o Ministério Público acreditam ter elementos fortes contra o senhor.
O que eles apresentaram são coisas que não têm como me incriminar. O principal é a receita (receita assinada por Boldrini com Midazolam prescrito em nome de Edelvânia Wirganovicz, outra suspeita de participação na morte de Bernardo. A perícia detectou presença do medicamento no corpo do garoto) e essa receita foi roubada do meu consultório, não foi preenchida por mim, não conheço essa Edelvânia, nunca atendi ela, nunca prescrevi medicação Midazolam para ela.
O senhor tinha receitas assinadas em branco?
Às vezes, a secretária dizia: "Dr, vai vir o seu João trocar a receita". Eu assinava, mas era específica para uma pessoa. Não é que eu deixava no consultório 20 receitas assinadas. Não. Isso é bem controlado.
O senhor nunca tinha visto ou falado com a Edelvânia, que confessou o crime e indicou onde estava o corpo de seu filho?
Não. Ouvi falar dela um tempo atrás, que elas (Edelvânia e a mulher de Boldrini, Graciele Ugulini) eram colegas em Frederico Westphalen na coordenadoria de saúde. Isso eu ouvi da Kelly, que eram amigas. Só ouvi. Pessoalmente, eu não a conhecia.
Depois do desaparecimento de Bernardo, ela não esteve em seu consultório ou sua casa?
Não, só vi ela na prisão (quando os três suspeitos foram presos em Três Passos).
O senhor não percebeu nada diferente no comportamento de sua mulher, Graciele, depois do desaparecimento do seu filho?
Ela se manteve totalmente dissimulada, não esboçando reação nenhuma. Era uma face dela que eu não conhecia, apesar de a gente ter convivido por quatro anos, um comportamento de frieza, como se nada tivesse acontecido. Não conhecia esse lado dela.
Graciele lhe pediu dinheiro naquela semana? O senhor notou movimentação diferente na conta? (A investigação comprovou que Graciele pagou R$ 6 mil a Edelvânia dias antes de Bernardo ser morto, informação também confirmada por Edelvânia em depoimento).
Não. Na conta do Banco do Brasil qualquer movimentação expressiva vem por mensagem para o meu celular. Tanto que a compra da TV naquela sexta veio para o meu celular, com a mensagem de R$ 1,4 mil. Uma quantidade pouca de dinheiro sempre tinha em casa (há um cofre na casa), do movimento do consultório. Tinha uma conta da pessoa jurídica, da clínica. Não circulava muito dinheiro, mas sempre entrava uma coisa ou outra, e ela tinha acesso com cartão.
O senhor saiu da cidade no sábado, dia 5 de abril, para ir a uma festa. Não pensou em falar com seu filho na casa de amigos, ver se estava tudo bem? Foi natural viajar sem contato com ele?
Foi uma coisa natural. Eu tinha informação de que ele estava na casa do Lucas, tentei fazer uma ligação do meu celular para o dele, mas não se completou. O Bernardo carregava o celular no USB do computador, ele tinha perdido o carregador dele. Às vezes, ou ele deixava o celular em casa sem bateria ou estava com ele, mas também sem bateria. Nesse sábado, fazia um mês que eu estava trabalhando no sobreaviso (no hospital de Três Passos).
Na investigação, a polícia aponta que o senhor comentou, ao procurar Bernardo, que ele tinha saído sem celular, e que mesmo sabendo disso o senhor afirma que tentou contato com ele por telefone.
Eu não sabia. Se isso foi dito, foi aleatório. Ele poderia ter levado, como poderia não ter levado. Podia ter deixado dentro da mochila descarregado. A gente sempre tinha uma comunicação, quase que diária. Como ele estudava cedo, meu celular despertava 6h45min, eu via que o Bernardo não estava se mexendo para ir para escola, eu mesmo do meu ligava para ele. Tinha esse contato. Por isso, liguei para ele na própria sexta, no sábado, domingo. Ele sabia ligar a cobrar para mim, era comum esse contato.
A partir de depoimentos, a polícia concluiu que o senhor nunca procurava Bernardo nem buscava na casa dos amigos. Por que o senhor foi procurá-lo na casa do amigo no domingo, dia 6?
O trato era de que 18h, 19h ele tinha que estar em casa, pois tinha aula cedo na segunda. Bernardo tinha saído sexta-feira de casa. Eu disse: se o Bernardo não chegar, vou buscá-lo, já estava me preocupando com isso desde o meio-dia. Fiquei esperando até que decidi passar no hospital e ir na casa do Lucas (segundo versão de Graciele, Bernardo teria ido passar o final de semana na casa do amigo Lucas). Saí do hospital reto e fui no restaurante do pai do Lucas. Já teve vezes em que o Lucas e o Bernardo ficavam no restaurante, que fica a uma quadra do hospital. Então fui lá perguntar pelo Bernardo.
O senhor não se preocupava com o fato de Bernardo passar dias fora de casa? Passar 10, 15 dias na casa de outras famílias?
Isso nunca aconteceu. O máximo que ele podia ficar era esse período de sexta até domingo de tarde. Dia de semana eu não deixava. Nos Petry (casal amigo de Bernardo), uma vez que eu fui fazer um curso de cirurgia em Curitiba, ele chegou a ficar uma semana. Ele ficou na casa da Ju Petry por escolha dele. Mas não que eu não me preocupasse.
O senhor foi procurado pelo Conselho Tutelar e teria resistido a ter o acompanhamento. Segundo conselheiros, o senhor disse que criaria seu filho do seu jeito.
A primeira vez, o conselho me abordou de uma maneira, falando coisas que não tinha como eu ter feito. Eu tinha tido uma operação urológica, e a conselheira tutelar veio dizer que o Bernardo relatou ter visto cenas adultas, de sexo. Tinha feito uma cirurgia, não podia ser. Isso é inverídico. Ele viu uma cena de namoro e interpretou mal, da forma dele e relatou ao conselho. Houve outra abordagem em que veio o conselheiro e uma assistente social. A assistente social foi bem grosseira, chegou com o tom de voz exaltado. Eu perdi a paciência.
Mas o que lhe falaram, que Bernardo vagava pelas ruas, ficava fora de casa e reclamava de falta de carinho?
É, todas essas questões assim de que não tinha o que comer, coisas sem substrato. A gente proibia ele de abrir conta em restaurante e barzinho. Se ele quisesse alguma coisa era só pedir que era dado. De nenhuma maneira o Bernardo andava sem roupa, sem comida, pedindo dinheiro. É absurdo.
Ele tinha característica de pedir coisas para pessoas fora de casa?
Não era uma criança suplicante, que pedia porque não ganhava em casa. Às vezes, podia até ser influência dos colegas.
Há relatos de que Bernardo ia sem lanche para escola, que os colegas davam ou alguém pegava no bar para ele.
Não.
Quem cuidava do lanche dele?
Era a Kelly, eu também e a empregada. Lembro que a empregada sempre deixava sanduíche pronto para ele levar ou ele levava dinheiro para comprar lanche e refri. Até mesmo a gente comprava fardo de refri de 100 mls. Às vezes, pelo fato de ele sair correndo, não dava tempo de pegar o lanche. Pode ter acontecido de ter saído sem tomar café, sem pegar o lanche e dizer para alguém que estava com fome.
O senhor não percebia que Graciele implicava com Bernardo? Ele queixou-se para diversas pessoas sobre ser maltratado por ela.
A implicância era assim: a Graciele pedia para ele ter mais cuidado com a leitura, o estudo, a higiene pessoal, o aparelho dentário, o óculos, a organização do quarto. Essa questão de ele ficar mais em casa ou não, a gente achava que as pessoas davam atenção, gostavam que ele fosse lá. Teve finais de semana em que eu estava de folga e combinava de fazer tal coisa de tarde, a gente estava almoçando, vinha uma família e já convidava ele para ir junto numa festinha.
Ele tinha muitas amizades na cidade.
Era uma criança querida, todo mundo gostava dele, de fácil relacionamento com as pessoas.
Mas e a relação com Graciele, o senhor notava briga entre eles?
Nos últimos tempos isso começou a ficar uma coisa mais severa.
Discussões?
O Bernardo, ao invés de ficar no quarto fazendo leitura ou tema, descia e ficava com a empregada na cozinha. Isso a Graciele não queria, dizia: "Bernardo, vai para teu quarto, vamos despedir as empregadas porque tu fica rodeando aí, o teu lugar é no teu quarto fazendo tuas atividades".
Eles brigavam?
Não chegavam a se ofender. Quando eles batiam boca, eu estava junto, era o momento que eu dizia para eles se acalmarem. Dizia que a gente era uma família e tinha que haver respeito. Eu e a Graciele nenhum desautorizava o outro. A gente seguia a mesma linha de conduta.
Como era a sua relação com ele?
O Bernardo não tolerava uma frustração, isso tirava ele do sério. Se ele tinha combinado com uma família de ir pousar no final de semana e não dava certo, ele ficava furioso. Parece que não tolerava frustrações. Eu tentei algumas vezes aplicar castigo, tirar o computador, ele ficava uma fera.
Como o senhor lidava com isso?
Tentava explicar o por que daquilo, mas chegava num ponto que eu cedia, tinha que ceder. Se ele decidia do jeito dele, tinha que ser. Depois, as coisas se acalmavam, a gente conseguia dialogar. Eu nunca fui de espancar ele, de bater nele, de fazer alguma violência. Sempre trabalhava nessa questão do psicológico.
Ele tomava remédios controlados. Fazia parte de um tratamento? Qual era o diagnóstico?
Um dos problemas era o déficit de atenção. E o outro, que ele mesmo falou para o psiquiatra, que ele queria tirar aquela raiva que tinha dentro dele, a explosão de raiva. Por isso, o médico deu essa medicação.
O senhor tinha controle sobre o tratamento? A investigação apontou que Bernardo tinha remédios controlados na mochila, que ele mesmo administrava.
Era controlado. O remédio que tomava duas vezes por dia ele ganhava os dois comprimidos. O vidro do xarope ele tinha discernimento do quanto precisava tomar.
O senhor disse que nos últimos tempos a relação de Graciele com Bernardo tinha piorado. O senhor vê um motivo para isso?
A Graciele e a Maria (Maria Valentina, de um ano e meio, filha de Boldrini com Graciele) criaram uma bolha em que queriam atenção, o Bernardo também queria minha atenção. A Kelly superprotegia a Maria e dizia que tinha pena de mim pelo fato de o Bernardo não ter puxado nada de mim, a calma, a serenidade que eu tenho. Acredito que seja esse tipo de coisa. A Graciele viu que estava perdendo espaço, que eu não era um pai que estava dando atenção exclusiva para a nova família. Minha ideia era termos uma família, que incluía eu, a Kelly, o Bernardo e a Maria Valentina. Os quatro elementos.
Isso ficou mais forte depois da sua audiência na Justiça, depois de o senhor ter se comprometido em resgatar a relação com Bernardo?
Depois da ida à Justiça, sentei com eles três, principalmente com ela (Graciele), e disse: "Vamos dar mais atenção para o Bernardo, porque a coisa está ficando numa situação que já está a nível de Justiça. Vou procurar fazer alguma coisa da minha parte". Foi a partir disso aí.
O que o senhor sentiu quando soube que Bernardo havia procurado a Justiça para se queixar do tratamento em casa e dizer que queria morar com outra família e que teria uma audiência sobre isso? Teve raiva dele?
Fiquei apavorado, levei um susto. Imagina, você ali, um oficial de Justiça apresentar intimação, você réu num processo sobre questão da guarda do filho, pensei: "Meu Deus, mas o que está acontecendo". E a audiência era uma hora depois. Eu fazendo exames, trabalhando e, às 9h45min, uma hora antes, chega um oficial de Justiça e diz: "Doutor, isso é a respeito de uma audiência com o Bernardo, a respeito da guarda dele, o senhor tem que estar lá às 11h". Eu disse: "Bá, vou ter que ir lá". Fui atrás de um advogado, consegui achar por acaso uma advogada para me acompanhar. Foi uma coisa que me deu um susto.
Como foi a audiência?
O juiz conversou, explicou toda a questão, depois a promotora também. Na verdade, foi uma conversa, não foi uma audiência. Dessa conversa a gente chegou a um acordo.
O que o juiz lhe pediu?
Pediu que eu desse mais atenção para o Bernardo, que eu me voltasse mais para ele. Que a queixa do Bernardo era essa aí, ele queria mais carinho, mais atenção. Me propus a fazer isso. Entendi a situação, vi que a coisa precisava que eu tomasse uma atitude. A gente conversou. Disse que mesmo que eu cedesse da minha parte, a gente ia continuar cobrando dele coisas das questões pessoais, higiene, dentista, escola. Principalmente, escola. A gente entrou em um acordo.
O que o Bernardo falou para o senhor na frente do juiz e da promotora?
Ele foi chamado por último, ele falou pouca coisa, quase não falou. Ele sentou numa cadeira lá, assim, com uma cara que parecia que estava um pouco assustado com toda aquela situação, ele não dialogou. Só o pessoal do Judiciário explicou por que eu estava com advogado, o que a gente tinha conversado e que dali a três meses ia se fazer nova audiência para ver como as coisas estavam andando.
Vocês foram embora do fórum juntos? O que conversaram?
Não conversei nada, até por orientação do juiz. E eu também não tinha intenção de xingar ele por ter ido lá. Se foi passado alguma mensagem para ele, foi de que as coisas tinham de ser resolvidas dentro de casa. A mensagem que eu passei: "Você tem que entender que as coisas se resolvem dentro de casa". Essa foi a mensagem, não assim de xingar, de dizer que ele fez uma coisa que não devia fazer ou ser grosseiro com ele.
O senhor passou essa mensagem para o Bernardo. E com a Graciele, como foi? Ela ficou brava com a situação, com Bernardo?
Ela disse assim: "Vamos instalar câmeras por toda a casa para ver realmente o que acontece aqui dentro, daí o Bernardo vai lá, fala tudo isso para a promotora e o juiz, aí eles vão saber realmente o que acontece, que eu mando o Bernardo estudar e ele não vai, que ele chega da escola e deixa a mochila aqui e não carrega para cima, eles vão conhecer realmente os fatos". O que eu recordo dela foi isso, vamos encher de câmera e depois mostrar para o Judiciário o que realmente acontece.
Vocês instalaram as câmeras?
Não, não. Ela disse: "Eles não sabem o que realmente acontece aqui dentro de casa e agora vem querer tomar atitudes".
Foi levantada suspeita de que o senhor e o juiz tinham relação de amizade, o que poderia ter beneficiado o senhor na decisão. Tinham?
Não tinha relação de amizade, não se frequentava a casa, só conhecia de vista da cidade, cidade pequena.
Depois dessa audiência, sua relação com Bernardo mudou? O que mudou?
Mudou. Em primeiro lugar, eu disse: "Bernardo, você vai começar a ficar mais tempo em casa. Eu não vou te proibir de ir na tia Ju (família amiga), mas você vai num dia e vai voltar no outro. Tem que ficar mais em casa". Fui no colégio, o coordenador me chamou para ver essa questão de por que ele não tinha paciência de ficar sentado e escutar o professor. Aos domingos a gente começou a sair mais de tarde, levava ele para passear no aeroporto e ver pessoal com avião de controle remoto. Outro domingo a gente viu paraglider motorizado.
A Graciele participava dos passeios?
Teve uma vez que ela foi. Matriculei ele no inglês, eu e ele nos matriculamos. Fui na dentista para continuar com o tratamento dentário dele, a dentista me propôs que a gente ficasse mais vigilante.
Tem informação de que ele tinha problemas com esse tratamento, que a Graciele dizia ser contra e não se importar em ajudá-lo.
Ele perdia as partes do aparelho, não usava. Essa era a questão. Ela dizia "o que adianta estar gastando dinheiro com isso se você não faz a sua parte".
Há na investigação diversos depoimentos informando que Bernardo não tinha a chave de casa nem o controle do portão, que costumava ficar na rua esperando que alguém abrisse a casa. A polícia afirmou isso também.
Ele tinha controle que abre o portão e a porta. A gente sempre orientava ele a não perder isso. Tinha a senha do alarme monitorado. Às vezes, me lembro de eu chegar final da tarde e ele mesmo abrir o portão para mim. Eu dizia: "Bernardo, por que você não está dentro de casa?" Ele dizia que não queria ficar sozinho dentro de casa. Ele tinha chave.
É verdade que Bernardo era impedido de conviver, de brincar com a irmã?
Ela (Graciele) tinha bastante restrição. Dizia que o Bernardo estava com as mãos sujas, que não lavou o rosto e queria tocar nela. Parecia que ela superprotegia como se a menina pudesse pegar alguma doença.
O Bernardo foi um filho planejado?
Com a Odilaine (primeira mulher de Boldrini, morta em 2010)? Foi planejado, sim.
E a Maria Valentina?
Também foi, porque a Graciele já estava na faixa dos 35 anos. Quando eu estava com a Odilaine e tinha o Bernardo, já de sete anos, a gente tinha decidido ter só ele. Com a Graciele, bom, a família para ser completa tem que ter filho. Ela veio com essa opção, eu concordei.
Há depoimentos no inquérito informando que Bernardo andava malvestido, tinha roupas velhas, não tinha casaco para frio e que usava um tênis velho seu, maior que o número dele. É verdade?
Não é verdade. Isso do tênis foi um tênis que para mim não servia e casualmente eu disse "Bernardo, bota no teu pé, vamos ver como fica", ficou um pouco grande, não sei se ele usou uma ou duas vezes, foi um fato pontual, isolado. Ele tinha acesso a vestuário, não andava malvestido. Como a Ju Petry tem loja que fabrica o vestuário do colégio, não sei se o Bernardo pedia ou eles davam, mas a gente não precisava comprar roupa da escola. O Bernardo chegava e dizia: "Ganhei da tia Ju". Isso favorecia para que ele tivesse acesso a essas roupas da escola. Quando a gente foi para Gramado, se comprou roupa para ele. Quando eu ia nessas minhas viagens, a gente se lembrava dele e comprava.
O senhor impedia que Bernardo tivesse contato com a avó materna?
Não, não impedia. Desde o início da morte da mãe dele teve uma audiência e eu falei na frente do juiz que ela podia ter contato com ele, nenhuma vez impedi. Tanto que nessas férias de verão (Bernardo passou as férias com a madrinha, que mora em Santa Maria, mesma cidade da avó materna. Ele se encontrou com a avó) eu disse para ele: "Vai lá na tua avó, visita ela, vai fazer bem para ti".
Seu primo, que foi seu primeiro advogado, declarou que o senhor era um "pai desleixado". O senhor se considera assim?
Desleixado acho que não. O que considero é que tinha muito trabalho. Trabalhava demais, sempre sobrecarregado, tu não podia planejar nada, não podia planejar. Além desse sobreaviso, que era dioturnamente, ainda tinha os pacientes que ficavam operados e eu era o único cirurgião que ficava lá. Mesmo que não estivesse de sobreaviso, tinha os pacientes que precisavam de cuidado. Então eu não podia planejar nem de cortar a grama em casa, que parecia que ia começar e já te chamavam no hospital. O fator trabalho excessivo foi uma coisa que preponderou muito. E isso cansa, cansa.
Mas como o senhor se define como pai?
Como pai eu me considero uma pessoa que queria o melhor, que o Bernardo tivesse uma personalidade que levasse ela a ser alguém na vida, uma personalidade construtiva. A questão de carinho, eu dava do meu jeito, que sei dar. E essa questão do desleixo é uma interpretação errada. Você trabalha demais, tinha atenção para dar para a esposa, para a filha pequena, mais para o Bernardo. Hoje, avaliando isso, vejo que é impossível de fazer, de conciliar, eu tentei fazer, mas acabou dando problema. Eu funcionava como um moderador, acalmando a Graciele, acalmando o Bernardo. Parecia que eu ficava apartando o incêndio que estava por acontecer. Claro que o Bernardo, uma criança, pode ser que na cabecinha dele, com a vinda da Maria Valentina, ele se sentiu com mais perda de espaço ainda.
Apesar desse clima, que o senhor diz que era um moderador, apartando incêndio, o senhor nunca percebeu que Graciele poderia representar perigo para o Bernardo?
Não, não. Ela nunca agrediu ele na minha frente. Ela ficava furiosa do jeito dela, mas saía. Jamais presenciei ou vi ela levantar o dedo para ele.
Alguma vez ela disse para o senhor que deviam se "livrar" de Bernardo porque ele era um incômodo?
Não, não.
Várias pessoas relataram à polícia ter ouvido isso dela, principalmente depois da audiência. Ela teria comentado até no seu consultório que tinha que se livrar dele e que tinha gente para fazer isso. O senhor nunca ouviu?
Não.
Onde o senhor estava — viajando ou internado — na época em que Bernardo teria sofrido tentativa de sufocamento por parte da Graciele (Bernardo relatou uma tentativa de sufocamento com travesseiro para a ex-babá, que teria ocorrido no final de 2012, e Graciele também teria contado o episódio para Edelvânia, que registrou o fato em depoimento)? O senhor soube disso?
Em 2012, tive um curso em São Paulo. Bernardo não falou, não soube disso, ninguém me falou. Essa questão do sufocamento só fui ficar sabendo agora. Não tive o conhecimento. Imagina, se tivesse conhecimento, claro que teria tomado uma atitude.
Se a relação familiar era essa, difícil, por que o senhor nunca pensou em dar a guarda dele para a avó?
Olha, o Bernardo eu considerava ele meu filho, a responsabilidade é minha. Claro que hoje, depois de toda essa tragédia que aconteceu, você teria outros pontos de vista a serem analisados, mas, na época, eu achava que teria condições de manter a família unida. Jamais me passou pela cabeça passar a guarda do Bernardo para fulano de tal e a gente se resolve, se livra do problema.
Por que o senhor não foi à cerimônia de 1ª comunhão de seu filho? Naquele final de semana, ele ficou sem poder entrar em casa e se abrigou com amigos que foram na cerimônia.
Naquele final de semana tinha o casamento de uma amiga da Kelly em Santo Ângelo. O casamento tinha sido marcado há vários dias. O Bernardo veio na mesma semana e disse "final de semana é minha 1ª comunhão". Eu disse: "Ah, Bernardo, já tenho compromisso". E aí a gente deixou uma senhora encarregada. A Kelly providenciou as roupas e deixou tudo organizado para essa senhora, a dona bugra, não lembro o nome. Deixou ela e o filho encarregados, que ele levasse ele (Bernardo) no altar para receber a 1ª eucaristia. Foi deixado tudo organizado.
Ele não tinha chave, ficou na rua e buscou abrigo na casa de amigos.
Naquele final de semana eu não lembro bem o que ficou combinado, se ele ia ficar na casa de alguém. A gente saiu de casa sábado e voltou domingo. Acho até que ele foi deixado na casa da bugra ou da tia Ju. Foram 24 horas.
Ele cobrou isso do senhor, não ficou magoado por sua ausência?
Não, não.
O senhor nunca notou a carência do Bernardo, que ele sentia falta de amor? Ou só soube disso pelo conselho tutelar e pela Justiça?
Não. Só soube pela audiência que ele queria morar em outra casa.
Bernardo teria dito a conselheiros tutelares que não podia participar de festas, churrascos em casa e era obrigado a ficar no quarto. É verdade?
Se eram só os meus amigos, aí não era lugar de criança. Mandava Bernardo ficar no quarto, Kelly também ficava no quarto. Eram meus amigos.
Numa destas festas, Bernardo teria dito na frente das pessoas que não gostava do senhor e o senhor teria dito que também não gostava dele. Há relato na investigação. É verdade?
Nunca aconteceu.
O desejo do Bernardo de ter um aquário foi registrado por várias pessoas na investigação, que contaram que ele havia escolhido e reservado um em uma loja. Por que o senhor não comprou o aquário para ele?
O aquário era para ser presente de Páscoa. Foi o combinado.
O senhor ia comprar?
Sim, ia ser comprado. Primeiro ele queria coelho, mas coelho é animal que dá trabalho. Até mesmo na audiência foi explicado para ele que dava muito trabalho. Ficou dúvida entre a fonte natural ou o aquário, a gente optou pelo aquário, pois a fonte cria muita alga.
Ficou muito forte a sua imagem de falta de emoção, de sentimento. Ficou a ideia de que Bernardo era um menino abandonado afetivamente. Isso foi registrado em documentos da rede de proteção. O senhor se envergonha ou tem remorso?
Essa tragédia aí, aconteceu uma tragédia, e hoje eu culpo a minha personalidade, meu jeito de ser. Mas isso (o jeito de ser) é uma coisa que não depende de mim, é o meu ser, meu estado de ser que produz isso em mim e aí as pessoas interpretam isso como nocivo. Eu já venho de criação assim.
O senhor disse que dava ao Bernardo o carinho do seu jeito. O que é o carinho do seu jeito?
O carinho do meu jeito é explicar o que são coisas certas. Carreguei o Bernardo nas costas, de colocar nos ombros, até quando aguentei, quando ele teve um peso maior. Eu rezava com ele, nas noites dava beijo de boa noite, dizia durma com Deus, sonhe com os anjos. A gente rezava o Santo Anjo do Senhor. Brincava com ele, conversava com ele, falava a questão de drogas, mandava caprichar na escola, que só a educação faria ele ser alguém na vida. Então, era dessa forma.
A Polícia ressaltou que o senhor seria uma pessoa fria, que não demonstrou emoções pelo sumiço e morte do filho. Que tipo de pessoa o senhor é?
Sou uma pessoa que realmente não consegue expressar bem os sentimentos, uma pessoa com autocontrole, muito contundente meu autocontrole e é uma coisa que me prejudica não conseguir expressar uma emoção. Estou vendo agora que isso tudo me prejudica. Na profissão eu tive um condicionamento, sempre lidando entre a vida e a morte. Havia casos em que perdia o paciente, casos em que o salvava. Você acaba se condicionando. Considero minha personalidade condicionada. Como o que eu fazia a maior parte do tempo era lidar com essas situações adversas, isso acaba te condicionando a ser uma pessoa como sou, ter esse autocontrole.
Como o senhor pensa a vida quando voltar a ter liberdade, acha possível viver em Três Passos, trabalhar?
A minha inocência é comprovada, agora só faltam os trâmites jurídicos. Acredito que as pessoas que pensam alguma coisa de mim com o tempo isso será modificado. Atuei 10 anos em Três Passos com conduta retilínea. Acredito que se eu voltar, posso começar do zero e vou conquistar meu espaço da mesma forma que conquistei antes.
E a relação com a Graciele, é possível manter?
Eu sou uma pessoa que não tolero mentira, e a primeira coisa que aflorou nela foi essa questão da mentira. Uma pessoa que mente eu desconsidero. Outra coisa: planejou, executou, assassinou um filho meu, isso é uma coisa que jamais eu perdoaria ela, não tem perdão aqui na terra.
O senhor tem certeza de que ela matou o Bernardo?
Eu tenho certeza, a informação que eu tenho agora é de certeza absoluta.
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