Fora da bolha que criaram, nem todos se esqueceram do desastre econômicos e dos megaescândalos de corrupção
Volto pessimista do ato no Largo S. Francisco. Pouquíssima gente, média de idade, a minha, pouquíssimos jovens, os mesmos intelectuais de ideias mofadas de sempre e zero vibração. Se uma causa dessa gravidade não empolga a esta altura é pq a democracia sangra e Bozo periga ganhar.”
Esse post da jornalista (petista) Barbara Gancia talvez tenha sido um dos pontos mais importantes da campanha eleitoral até aqui. Tirando a bobagem do “a democracia sangra” (a não ser que ela se refira ao papel exercido pelo Supremo Tribunal Federal), a jornalista parece ter captado o que os intelectuais esnobes chamam de “Zeitgeist”: o espírito do tempo.
A esquerda brasileira nunca teve tanto poder, na mídia, no aparelho estatal, no sistema de educação, na imprensa, nas altas Cortes de justiça. Eles mandam — e mesmo assim parecem perdidos. Imagino o que Barbara Gancia deve ter levado de bronca dos companheiros pelo seu suposto sincericídio. Na minha opinião, petistas e agregados deveriam agradecer a ela por ter exposto uma crise que pode ir para debaixo do tapete, mas que nem por isso vai parar de crescer.
Os mártires do passado
Eu me declarei “socialista” com 12 anos de idade, pouco depois da instauração do regime militar. Cresci ouvindo na escola histórias da resistência e do sacrifício que a esquerda fazia para nos libertar da ditadura. Ouvia casos de mártires que se imolavam para que a gente um dia pudesse viver no paraíso comunista. Viver como em Cuba de Fidel Castro, onde, segundo quem contava essas histórias, todos eram iguais, bem nutridos e servidos gratuitamente pelos melhores médicos do mundo.
Eu frequentava passeatas nos anos 1960 e testemunhei o frisson provocado nas garotas quando José Dirceu subia num ônibus, ajeitava os longos cabelos negros atrás da orelha e soltava as palavras de ordem ao megafone. Dirceu era o símbolo da resistência, o galã do idealismo juvenil, a esperança de dias melhores para o Brasil explorado pela burguesia aliada ao imperialismo. Ele arriscava sua vida pela causa. Era um mártir a ser reverenciado.
A gente ouvia as narrativas que os companheiros cochichavam na mesa de bar. Uma das que mais me impressionaram na época falava de Francisco Julião, o líder das míticas Ligas Camponesas de Pernambuco. Segundo me diziam, Francisco Julião, um sujeito magro e humilde, havia sido preso e torturado até a morte em 1965 pelos militares malvados enquanto organizava as massas trabalhadoras nos canaviais de Pernambuco. E que heroicamente não havia denunciado nenhum companheiro de luta, mesmo quando — perdão pelo detalhe — os milicos teriam pregado seu pênis numa tábua.
(Ninguém dizia na época que o Francisco Julião na verdade era um advogado das Ligas, que por sua vez não eram tão comunistas assim. E que Julião morreu de infarto no México, em 1999, com seu órgão sexual intacto. Seu martírio aparentemente foi apenas uma lenda de bar.)
Nos anos 1970, nossos corações militantes estavam com os companheiros do Partido Comunista do Brasil. Eles tiveram a coragem suprema de, na fase mais repressiva do regime militar, estabelecer uma guerrilha no interior do Pará. A ideia era iniciar a revolução socialista no campo e aos poucos cercar as cidades até a vitória final. Repetir o que havia acontecido na China de Mao Tsé-tung e no Vietnã de Ho Chi Minh. Apesar de solidário aos companheiros do Araguaia, eu não tinha coragem para pegar em armas. Era um covarde pequeno-burguês que não dispensava chuveiro elétrico, Choco Milk geladinho com bolo Pullmann e os episódios de Perdidos no Espaço aos domingos.
A guerrilha do Araguaia foi rapidamente controlada pelos militares, mas deixou em nossa imaginação a imagem de outro mártir: José Genoino, futuro deputado petista, capturado pelos militares. Aquela imagem de Genoino encostado a uma árvore, algemado com uma expressão triste, virou a régua pela qual a gente media nossa covardia. Ele se sacrificava pela nossa redenção.
Cheque em branco eleitoral
Veio o fim do regime militar. Meus amigos de esquerda já não tinham mais que lutar “contra a ditadura”. Mas continuaram contra tudo o que “está aí”. Nas eleições de 1989, eu já era adulto e minhas causas amadureceram — Estado menor, menos burocracia, liberdade de mercado e expressão, a negação do populismo irresponsável. Mas as pessoas ao meu redor idolatravam com tons de histeria o ex-metalúrgico de voz rouca conhecido como Luiz Inácio Lula da Silva.
Um amigo chegou a declarar na época: “Sempre votei, voto e sempre vou votar no PT”. Esse amigo não foi o único a dar esse cheque em branco eleitoral. Era o início de uma obediência cega que ainda não acabou, quatro décadas depois. Nenhuma ideia podia ser melhor do que as ideias propagadas pelo PT. Nenhum político poderia ser uma opção a Lula.
A esquerda perdeu o chão da realidade, não tem mais nada a propor, a não ser destruir tudo o que foi feito de melhor nos últimos anos
Desde Fernando Collor de Mello, eu gostaria de ter tido a chance de escolher entre duas opções para presidente, mas nunca tive esse direito. Um dos candidatos é sempre Lula ou um de seus postes. Eleição para mim virou opção binária — Lula ou o outro. Eu vou no outro. E para muita gente por causa disso virei, dependendo da época, um “tucano”, um “extremista de direita” ou qualquer outra ofensa da hora.
“Bozo periga ganhar”
Não sei quem vai ganhar as eleições de outubro. Como continuo votando “no outro”, agora virei “bolsonarista”. As pesquisas indicam vitória folgada de Lula. O difícil é encaixar as pesquisas na realidade. Pelo menos se as eleições forem conduzidas de maneira mais transparente do que são conduzidas as pesquisas eleitorais.
Alguns fatos, na minha opinião, podem dar razão a Barbara Gancia quando ela diz que “Bozo periga ganhar”. A esquerda brasileira teve de tirar Luiz Inácio Lula da Silva da prisão pela porta dos fundos para que o PT tivesse alguma chance nas urnas. Jair Bolsonaro foi uma grande novidade em 2018 para a maior parte dos brasileiros. Lula está sob os holofotes desde 1980, tornou-se uma caricatura de si próprio, cheio de ressentimento e arrogância. Não deixou herdeiros, não apontou uma saída para o crepúsculo de seu reinado. Que se parece cada vez mais com um romance tipo realismo fantástico.
A esquerda perdeu o chão da realidade, não tem mais nada a propor, a não ser destruir tudo o que foi feito de melhor nos últimos anos. Eles são contra as privatizações, contra a desburocratização, contra o controle de gastos do Estado, contra o Pix, contra a reforma sindical, contra tudo que possa levar o país para a frente. Ciro Gomes, o “progressista” que se nega a sair da década de 1950, já declarou que, se a Petrobras e a Eletrobras fossem privatizadas, ele as “tomaria de volta”, como se essas empresas pertencessem a ele.
O “progressismo” nacional virou uma engrenagem de manutenção de privilégios no aparelho estatal. A esquerda brasileira, que já teve heróis como Francisco Julião e José Genoino, hoje é a opção política preferida para banqueiros e muitos grandes empresários. As multidões que lotavam as avenidas foram substituídas por grupinhos de artistas que protestam bravamente no conforto de seus duplexes, usando seus iPhones 13. Karl Marx talvez tivesse razão: o mundo enfrenta neste século 21 uma luta de classes. Mas quem ficou ao lado dos ricos foram os marxistas.
Uma nova esquerda
Aliás, o partido número 13 mostrou a que veio durante seus 13 anos no poder. Fora da bolha que criaram, nem todos se esqueceram do desastre econômico que eles produziram e dos megaescândalos de corrupção que promoveram. Repetem de boca cheia a palavra “democracia”, mas apoiam as piores ditaduras e regimes falidos, como Venezuela, Cuba e Argentina. Essas são as utopias que nos oferecem. A lógica não é o forte de seus apoiadores.
A esquerda, que já lutou pela “emancipação do proletariado” como um todo, agora se limita a apoiar militantes de grupos raciais, pessoas que não querem ser nem homens nem mulheres e defensores do aborto. Defendem causas como o direito de se viciar em crack. Ideologicamente, meteram-se num gueto de contradições e atos difíceis de serem justificados.
Eu acredito na democracia. Nada substitui o debate de ideias e o confronto civilizado de concepções de mundo. Um país de pensamento único não é democrático. Na minha opinião, o Brasil precisa sim de uma esquerda. Mas de uma nova esquerda — construtiva, produtiva, civilizada, ética, livre de dogmas apodrecidos, honesta e liberta de um passado de tiranias e horrores. Uma esquerda que dialogue com a sociedade, que lute com suas convicções pela população — e não por corporações corrompidas e grupinhos de milionários.
Essa velha esquerda de “ideias mofadas” representada por Lula (e Fernando Haddad, Gleisi Hoffmann, Ciro Gomes, Guilherme Boulos, etc.) tornou-se uma seita regressista, poderosa e agressiva. Mas a lógica, essa senhora implacável, revela que ela e seu líder máximo se dirigem a passos largos para a implosão. Até Barbara Gancia parece ter intuído isso.
Revista Oeste