Demasiada para uns, necessária para outros, atuação mais intensa do Judiciário tem pautado grandes questões sociais e comportamentais no país
20/09/2014 | 15h05
No começo dos anos 90, chegou à Justiça o caso de uma mulher de Porto Alegre que, depois de ser deixada pelo marido, trabalhou duas décadas como lavadeira, criou sozinha os cinco filhos e conseguiu amealhar alguns bens, incluindo uma casa. Agora, o homem estava de volta para pedir o divórcio e exigir metade do patrimônio que ela havia construído.
A lei dava razão ao marido. Dizia que o regime de bens instituído no casamento cessava apenas com a separação judicial. Não importava se o casal vivesse junto ou não. Responsável pelo caso, a juíza Maria Berenice Dias chegou à conclusão de que a legislação estava em conflito com o mundo real. Negou a divisão dos bens da lavadeira.
– Tomei uma decisão que parecia ser absolutamente contrária à lei. Mas fiz justiça, que é o compromisso do juiz – afirma Maria Berenice, hoje advogada.
No últimos anos, esse tipo de sentença, que surge em contradição com a lei ou estabelece novos direitos nos casos em que a lei é omissa, tornou-se corriqueiro. Em um primeiro momento inéditas e pioneiras, essas decisões se acumularam na forma de jurisprudência e em alguns casos provocaram até mesmo mudanças na legislação. Transformaram não só a Justiça, mas a própria sociedade brasileira. Foi a partir de decisões judiciais que o casamento dos homossexuais, o aborto de fetos anencéfalos e formas alternativas de família passaram a ser reconhecidos pelo Estado.
Posicionados na vanguarda desse processo, os juízes brasileiros se converteram em agentes de transformação social.
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O protagonismo dos magistrados, chamado de ativismo judicial, tem com frequência feito avançarem nos tribunais agendas que não conseguem prosperar no sistema legislativo. Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família, acredita que os juízes ganharam importância por causa da “inércia” do Congresso Nacional:
– Quem tem feito o Direito de Família avançar no Brasil, por meio de decisões históricas, é o Judiciário. A lei não está acompanhando os costumes, porque qualquer tema que tenha conteúdo moral é reprovado no Congresso. Alguns dizem que o juiz está extrapolando sua função, que a função dele é julgar, não legislar. Mas eu não concordo. O Judiciário vem para proteger as minorias que não têm respaldo da lei. Se for esperar que a maioria seja a favor do casamento gay ou da multiparentalidade, isso nunca vai ser reconhecido.
A nova influência dos juízes desabrochou no Brasil com a Constituição de 1988, que introduziu uma série de garantias fundamentais a que se pode recorrer nos tribunais para ir além do que está na lei. Em nome do princípio da igualdade, por exemplo, os homossexuais puderam comparecer ao Judiciário em busca do direito ao casamento.
– Uma Constituição como a nossa cria facilidades para o juiz. Ela estabelece a união estável entre homem e mulher. Mas não veda a união estável entre pessoas de mesmo sexo. Não há proibição. Algum juiz pode fazer uma interpretação diferente, mas o avanço ocorre quando a parte que procura o Judiciário encontra um juiz que está, digamos, melhor preparado para fazer uma interpretação cidadã, uma interpretação que assegura direitos – afirma o juiz Roberto Lorea, que atua no foro central da Capital.
A partir de uma decisão pioneira, observa Lorea, outras sentenças no mesmo sentido se acumulam, consolidando uma jurisprudência. Segundo ele, esse processo impede que um magistrado imponha uma determinada agenda.
– O juiz pode ser um agente de transformação social. Acredito nisso. Mas não é um cara sozinho que faz uma loucura. Se houver uma decisão de primeiro grau, cabe recurso para o Tribunal de Justiça. Depois, cabe recurso ao STJ. As coisas vão acontecendo por meio de pequenos avanços, até que vira uma espécie de consenso. Não receio uma ditadura do Judiciário, porque existem pesos e contrafreios – afirma Lorea.
Maria Berenice Dias, responsável por várias decisões pioneiras, acredita que as sentenças polêmicas acabam por mudar também a sociedade:
– O papel do juiz não é julgar para servir de coisa emblemática. Isso é consequência. Ele julga de determinada maneira porque aquela é a decisão mais justa. Mas ele puxa a mudança na medida em que, se um juiz diz algo, as pessoas acolhem. Não vou afirmar que mude a sociedade, mas faz as pessoas refletirem.
O polêmico episódio de Livramento
O protagonismo assumido pelos magistrados ganhou contornos explosivos neste mês, com um casamento coletivo programado pela juíza Carina Labres em um CTG de Livramento. Um dos casais era formado por duas mulheres. Carina já vinha promovendo uniões gays, mas mexeu em um vespeiro ao levá-las para um reduto do tradicionalismo. O CTG foi incendiado, e o casamento foi para o fórum. A juíza não se abalou:
– Eu vim para fazer diferença, não para passar em branco pelas comarcas.
A ação da magistrada colheu elogios e críticas. Para a advogada e professora da PUCRS Ana Luiza Carvalho Ferreira, o que Carina fez foi agir de acordo com resolução do CNJ que obriga os cartórios a registrar casamentos gays:
– Além do cartório, ela fez uma celebração pública. Está correta? Sim. Se há previsão legal e não há vedação, os noivos podem escolher onde casar.
As ressalvas à ação de Carina não se direcionaram ao casamento gay, mas ao local de sua realização. O desembargador Alexandre Mussoi Moreira afirma que o papel do juiz é pacificar a sociedade, não agravar problemas:
– No caso das uniões homossexuais, não é questão de concordar. O direito evoluiu da maneira que está posta. Mas daí a tomar atitudes que confrontam a sociedade, isso é que se deve evitar. Os direitos têm de ser garantidos. O que a Justiça não precisa fazer é celebrar o contrato num CTG.
A juíza Rosana Garbin celebra a transferência para o fórum:
– Eu elogiaria o fato de ela ter transferido para o fórum, porque mostra que esse é um espaço em que essas situações são normais.
Zero Hora