O primeiro e óbvio resultado da “descriminalização de drogas para consumo próprio” será o rearranjo da logística dos traficantes, que passarão a carregar apenas uma quantidade de droga que possa ser classificada como ‘pessoal’
Por Roberto Motta – Revista Oeste
Não existe nenhuma forma de liberar drogas apenas “para consumo próprio”. A razão é muito simples: não há como garantir que a droga que o indivíduo traz no bolso será consumida por ele mesmo.
A não ser que o policial seja um vidente.
Esta expressão, “liberação para consumo próprio”, não tem nenhum significado, pela impossibilidade de ser verificada — a menos que a pessoa, parada pela polícia, consuma toda a droga na frente do policial.
Essa ideia contraditória, e cuja fiscalização é impossível, funciona apenas como cortina de fumaça. Na verdade, o que se pretende é que um indivíduo que carregue certa quantidade de droga — considerada “pequena” por algum critério totalmente arbitrário — não seja importunado.
Não que hoje a importunação seja grande. Embora o consumo de drogas ainda seja considerado crime, não há mais pena de prisão. Hoje o máximo que acontece com alguém flagrado com uma pequena quantidade de droga — alguns baseados, por exemplo — é ser conduzido a uma delegacia e ter que ouvir uma bronca de um juiz ou pagar uma cesta básica. Mesmo isso raramente acontece. Por isso, em quase toda grande cidade brasileira é possível ver pessoas fumando maconha nas ruas despreocupadamente. O crack é usado à luz do dia em áreas do centro de São Paulo e em Copacabana, um bairro nobre do Rio de Janeiro.
Aprovada a tal “liberação para consumo próprio”, qualquer pessoa flagrada com drogas poderá alegar que as adquiriu para seu próprio consumo e seguir seu caminho.
É claro que a pessoa pode estar mentindo. Ela pode simplesmente estar transportando uma pequena quantidade de drogas para entregar a um cliente — atividade descrita pela lei como “tráfico de drogas”. Como qualquer policial experiente pode confirmar, não existe “pequeno traficante”. Existe traficante que foi preso com uma pequena quantidade de drogas. Aprovada a nova (des)regulamentação, essas prisões vão acabar.
Quem propõe essa “política de liberação de drogas para consumo próprio” tem plena consciência dessas questões. Então é justo perguntar: por que propor algo assim?
E mais: quais serão os resultados dessa decisão?
A primeira consequência será dificultar o trabalho da polícia, que já é extremamente difícil. A leniência institucional com o tráfico de drogas cresce a olhos vistos. Não são poucos os casos de magistrados que libertaram traficantes presos com drogas.
Uma juíza de Mato Grosso do Sul determinou a soltura de um traficante preso com 2 toneladas de maconha, sob o argumento de “invasão injustificada de domicílio”. Ela tomou essa decisão embora o local onde a polícia entrou não fosse domicílio de ninguém, mas apenas um imóvel alugado pelo réu especificamente para o armazenamento da droga, conforme ele mesmo confessou. Além de absolver o réu confesso, a magistrada mandou que fossem devolvidas a ele a balança de precisão e a bobina de plástico-filme usadas na distribuição da droga.
Essa não é uma decisão isolada ou uma exceção.
Em setembro de 2021, policiais federais descobriram 1 tonelada de cocaína escondida dentro de mangas, em um galpão em Itaguaí, no Rio de Janeiro. Em março de 2022, a Justiça classificou a operação como ilegal, anulou as provas e soltou os presos. O motivo: os agentes não possuíam um mandado judicial para entrar no local. A decisão teve como base o entendimento do STF de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori“. Mas, embora o galpão possa se encaixar no conceito de domicílio, de acordo com o artigo 150 do Código Penal, guardar ou ter drogas em depósito configura um crime permanente, permitindo o flagrante a qualquer hora, independente de mandado.
Nada disso importou.
Esses exemplos deixam claro que, na prática, já está em andamento uma “descriminalização” do tráfico de drogas através de ativismo judicial. É uma “liberação” conduzida por magistrados que jamais tiveram um único voto do eleitor, e que tomam essas decisões baseados em narrativas ideológicas que não encontram amparo jurídico e que contradizem os fundamentos de nossa cultura.
O legislador brasileiro ajuda pouco. Ele criou a figura do “tráfico privilegiado”. É assim que a lei chama o ato do usuário que foi à boca de fumo comprar cocaína e resolveu levar uma quantidade extra para os amigos. Essa figura jurídica, em tese, ajudaria a separar o usuário comum, que carregava um pouco mais de droga, do traficante profissional.
Mas a regra atual nos tribunais brasileiros é classificar todo tráfico como “privilegiado”. Isso vale até para o traficante preso com um fuzil depois de trocar tiros com policiais. Ou a polícia encontra alguma forma de provar que o sujeito é criminoso profissional, ou fica valendo a classificação de “tráfico privilegiado”.
E daí? Daí que a pena do traficante, que seria de cinco anos, cai para um ano e oito meses.
Em regime aberto.
Cabendo pagamento de cesta básica e outras penas alternativas.
Quem decidiu liberar as drogas?
No Rio de Janeiro, inúmeras pessoas já receberam autorização da Justiça para cultivar maconha em suas residências, supostamente para uso “medicinal”. Mas não existe nenhum mecanismo de fiscalização da quantidade cultivada, ou do destino que se dá às plantas.
Sabendo disso, é inevitável a sensação de que alguns legisladores e magistrados, à revelia do que deseja a maioria da sociedade, já decidiram legalizar as drogas.
Qual é a origem dessa decisão? De onde vem esse esforço para impor uma mudança social que não é aprovada pela população e que vai contra as convicções morais da maioria das famílias?
É possível especular sobre as origens desse movimento.
É um fenômeno antigo a tomada das escolas de Direito pelo pensamento da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, um grupo de pensadores marxistas que emigrou da Alemanha para os Estados Unidos no início do século 20. Esses “filósofos” caracterizam os sistemas de Justiça Criminal como ferramentas de opressão.
Estudantes brasileiros do primeiro semestre de Direito, antes de terem noções básicas da filosofia jurídica, recebem como leitura obrigatória o livro Vigiar e Punir, do marxista revolucionário Michel Foucault. Boa parte do pensamento jurídico brasileiro é dominada pela doutrina do garantismo penal, criada pelo marxista italiano Luigi Ferrajoli, que apresenta o criminoso como uma vítima da sociedade opressora que não merece nenhuma punição.
O marxismo — uma ideologia reducionista, simplificadora ao extremo e ignorante das bases da moderna sociedade liberal — está nos alicerces de boa parte do pensamento jurídico nacional recente.
O resultado é a promoção de uma visão ingênua e romântica das drogas entorpecentes e de seus produtores, alimentada pela ideologia “progressista” e pelo desconhecimento, por muitos operadores do Direito, dos fundamentos morais da civilização ocidental e da devastação pessoal e social produzida pela dependência química.
O resultado é uma mistura de cegueira jurídica com imoralidade ideológica que faz com que juristas sejam incapazes de compreender a tragédia humana e a ameaça criminal — de natureza terrorista e transnacional — representadas pelo narcotráfico.
Magistrados pretendem impor, pela força de decisões judiciais, uma moral arbitrária e antinatural, contrária ao desejo das famílias, à moralidade geral e ao senso comum. É uma postura caracterizada pelo que Hayek chama de “racionalismo construtivista”: a ideia de que meia dúzia de iluminados têm um conhecimento maior do que aquele acumulado por centenas de gerações e consolidado em tradições e costumes seculares, muitos deles inarticulados, que permitiram a sobrevivência e o progresso da humanidade.
O primeiro e óbvio resultado da “descriminalização de drogas para consumo próprio” será o rearranjo da logística dos traficantes, que passarão a carregar apenas uma quantidade de droga que possa ser classificada como “pessoal”.
Como é pouco provável que uma quantidade específica possa ser definida como caracterizadora do “consumo pessoal”, o trabalho da polícia será enormemente dificultado. A partir dessa “liberação”, qualquer apreensão de drogas estará sujeita a um debate interminável sobre se a quantidade apreendida caracterizava ou não o tal “consumo próprio”.
Milhares de famílias passarão pelo drama de ver um de seus filhos destruir sua vida — e, muitas vezes, toda sua estrutura familiar — em busca de mais uma dose
Não é preciso ser um gênio para perceber o desestímulo que isso representará para o trabalho policial. Essa consequência, certamente, não passa despercebida pelos promotores da “liberação”. Qualquer impedimento à ação policial sempre foi considerado, pelas mentes “revolucionárias”, uma vantagem.
O segundo resultado, evidente para qualquer um que pense logicamente, será o aumento do consumo de todas as drogas, resultante da garantia de que os usuários, a partir da nova decisão, não poderão mais ser incomodados pela polícia.
Isso é boa novidade apenas para aqueles que desconhecem — ou lucram com — a tragédia da dependência química. Milhares de famílias passarão pelo drama de ver um de seus filhos destruir sua vida — e, muitas vezes, toda sua estrutura familiar — em busca de mais uma dose.
Foi exatamente para prevenir isso que a Suécia criminalizou o uso de drogas, inclusive da maconha. Para proteger as pessoas dos riscos da dependência química, fartamente documentados na literatura internacional.
Drogas causam dependência. Drogas viciam. Que tipo de pai desejaria um destino como esse para o seu filho?
É evidente que se torna insustentável manter a proibição da produção e do comércio quando o consumo é liberado. Imagine uma legislação que diz que você pode comprar um carro, mas que a fabricação e a venda do carro são crimes.
É evidente que o próximo capítulo dessa novela será a descriminalização da produção e da venda de drogas.
Ou seja, a legalização do tráfico.
É o primeiro passo na construção de um narco-continente.
Resistamos.