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Fernanda Canofre
Na véspera do dia do casamento, uma jovem de Uruguaiana descobriu que teria que deixar tudo para trás, fazer as malas em duas horas e se despedir da família para sempre. Um violinista estava no meio de um concerto, em Porto Alegre, quando foi algemado e arrastado do palco pela polícia. Era um dia de semana comum quando uma menina, de cerca de dez anos, foi colocada dentro de um furgão preto e viajou por duas horas em uma estrada de chão empoeirada sem saber para onde ia. “Eu perguntava: onde é que vocês vão me levar? E eles diziam: nós já vamos chegar num lugar bem bonito”, lembrava ela, anos depois, no documentário ‘A Cidade’ (2013). Todos eles, assim como outras 2.474 pessoas, terminaram no mesmo destino: o Hospital Colônia de Itapuã.
Em maio de 1940, ele se tornava o último leprosário a ser inaugurado pela política de isolamento dos portadores de hanseníase, adotada no Estado Novo de Getúlio Vargas. Assim como os outros 39 criados pelo país, o HCI era uma mini-cidade com igrejas, praças, escola, salão de festas, prefeitura e delegacia, para onde todas as pessoas que eram diagnosticadas com a doença no Rio Grande do Sul eram levadas. Uma internação compulsória que duraria até o fim da vida do paciente. O primeiro carro, com 180 pessoas, chegou ao local dois meses depois da abertura oficial.
“Por que trazer esse doente para cá? Porque a hanseníase era uma doença contagiosa. Deixar esse paciente lá fora, estaria transmitindo e acometendo a sociedade saudável”, explica a atual enfermeira de Itapuã, Rita Camelo.
A 53,5 km do Centro de Porto Alegre, hoje, os 1.253 hectares de área verde são um museu a céu aberto e em ruínas. Uma memória desbotada de outros tempos. Parte das 172 edificações da cidade, porém, segue ocupada por pessoas que se curaram da hanseníase (mas decidiram permanecer vivendo na Colônia) e por pacientes psiquiátricos. Em 2012, quando a diretora Liliana Sulzbach gravou o documentário que citamos no início da reportagem, 34 pessoas viviam no local. Hoje, são 72. Além dos 20 sobreviventes dos tempos do leprosário e alguns antigos pacientes psiquiátricos, desde maio do ano passado, mais pessoas do Hospital Psiquiátrico São Pedro têm sido transferidas para o local, pelo governo do Estado.
O pórtico com a frase “Nós não andamos sós” segue na entrada da antiga vila, em letras pintadas com o mesmo verde escuro de antigamente. A diferença é que agora já não existe o vidro para separar o mundo de cá do outro lado. Numa manhã de janeiro de 2018, três ou quatro moradores-usuários sentam sob o sol e caminham entre as duas áreas do hospital. A reportagem, porém, não está autorizada a fazer foto ou entrevistá-los. Segundo a administração do local, desde que matérias foram publicadas chamando Itapuã de “cidade dos mortos-vivos”, ninguém mais foi autorizado a conversar com quem vive ali.
O dia de ontem
Os primeiros relatos de pessoas afetadas pela hanseníase têm 3 mil anos. Naquela época, a doença era conhecida como lepra ou “doença dos lázaros”, em referência à história da Bíblia. A cura só surgiu em 1943. Três anos depois da criação do Hospital de Itapuã. Levariam ainda outros seis anos para que a medicação contra a doença – a dapsona – começasse a ser comercializada mundialmente. No Brasil, as regras de isolamento instituídas por Getúlio seguiram valendo até 1961, quando o então ministro da Saúde, Tancredo Neves, publicou uma nova portaria sobre tratamento no país.
Em um parágrafo único, ela diz: “No combate à endemia leprótica será, sempre que possível, evitada a aplicação de medidas que impliquem na quebra da unidade familiar, no desajustamento ocupacional e na criação de outros problemas sociais”. Ou seja, ninguém mais teria de deixar tudo após receber um diagnóstico positivo. A política reconhecia que leprosários só aumentavam o preconceito. Para muitos que foram levados a Itapuã, no entanto, a decisão chegou tarde.
Com a lei federal criada por Getúlio, assim que a pessoa fosse diagnosticada com uma lesão na pele, era obrigada a ir viver num espaço isolado. Não importava o estágio da doença ou idade. O furgão preto da profilaxia viajava por todo o Estado para buscar os novos moradores. Para quem era casado, receber o diagnóstico dava ao cônjuge o direito de se divorciar, numa época que o divórcio não era lei no Brasil. Ouvir de um médico que você tinha “lepra” era como receber a notícia que havia morrido para a sociedade.
Muitos, depois de atravessar a entrada que separava a zona limpa da zona suja, mudavam até o nome para evitar que a família sofresse constrangimento do lado de fora. Se acostumavam com a vida em um pavilhão, onde teriam de dividir quartos com outras três ou quatro pessoas, pelo menos até casar e ter direito à uma casa separada.
“É a dor do pavilhão… Tu deixaste um namorado, tu deixaste a família, tu deixaste todos lá fora, aqui, quando tu chega, tu nada conhece, nada sabe. E tu tem que te acostumar porque aqui é tua vida. Por outro lado, tu não tem nenhum medicamento, nenhuma esperança de um dia melhorar. Onde ficam os teus afetos? Os filhos que tu deixaste? Aqui tu cria uma irmandade, porque é tudo o que te sobra. Aqui tu cria resignação e aceitação”, conta a enfermeira Rita. “Todos os hospitais colônia têm uma porta de entrada. A porta de saída é o cemitério”.
Alguns se adaptavam à nova vida. Casavam, entravam para o time de futebol, encontravam uma nova profissão. Conforme a cidade foi ganhando mais moradores, eles mesmos criaram uma olaria para construir novos prédios, como o “Pavilhão de Diversões”. Lugar que abrigou grandes bailes, sessões de cinema, a televisão por onde quem vivia ali viu o homem chegar à lua em 1969. O salão que acomodava um público maior do que o Theatro São Pedro, com mil cadeiras arrumadas lado a lado e cobrava 400 réis de entrada, hoje, tem o teto destruído e o palco coberto por restos e sujeira.
Outros pacientes, porém, demoravam para aceitar. Fugas – especialmente de homens, que sentiam falta de bebida – eram comuns no Hospital Colônia. Assim que o paciente era capturado, o delegado do local (também um doente) o enviava para a prisão. Uma casa com salas separadas para os “detentos” e duas solitárias, do tamanho de um armário de vassouras, onde muitas vezes eles eram jogados por dias, se fossem reincidentes.
As crianças que chegavam sozinhas cresciam nos pavilhões. As meninas eram colocadas aos cuidados de uma freira, também doente, e os meninos, com um senhor de idade que ensinava carpintaria. “Eu vim para cá quando tinha 7 anos. Eu achava que não ia conseguir ficar aqui dentro. Pensava: será que eu vou ter que ficar a vida toda aqui?”, lembra uma mulher no filme ‘A Cidade’. Quando era um ano mais jovem que ela, outra menina de Itapuã bordou um travesseiro com flores cor-de-rosa e a palavra “felicidade” a pedido de uma freira. Anos depois, quando soube pela enfermeira o que estava escrito, ficou triste. “Se eu soubesse ler, eu nunca teria escrito essa palavra”, disse.
Já as crianças nascidas em Itapuã nunca ficavam. Depois do parto, a mãe tinha poucos segundos para ver o rosto do bebê pelo buraco de uma tábua e se despedir para sempre. Elas eram, então, encaminhadas a abrigos de freiras e para adoção, sem nunca saberem sua história. Uma reportagem da BBC de 2016 afirma que, segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 40 mil bebês foram separados dos pais em leprosários do Brasil.
Rita conta que, mesmo que muitas mulheres tentassem evitar a gravidez, não restavam muitas opções. “As mães aqui dentro rezavam muito para nunca engravidar. Na confissão, se ela dissesse que estava evitando fazer sexo, para não engravidar, ela não recebia a comunhão na frente de todos. Para que todos soubessem, que aquela não era uma boa esposa”.
Zona suja
O território de Itapuã era dividido em duas zonas: a limpa e a suja. Uma para os doentes, outra onde circulavam os funcionários que davam apoio à cidade, comprando alimentos, abastecendo de medicamentos, tecidos para roupas, etc. Além dos doentes, só dois médicos e um grupo de 19 freiras, todas vindas da Alemanha e especialistas no tratamento de pessoas com hanseníase, poderiam circular na área com risco de contágio.
A transmissão da doença se dá pela saliva de pessoas não tratadas, através de um bacilo. O primeiro identificado na História. Descoberto pelo dermatologista e bacteriologista Gerhard Hansen, em 1873, ele pode levar de dois a sete anos para apresentar os primeiros sintomas e não escolhe idade ou gênero de quem infecta. O doente perde a sensação em certas regiões da pele, tem dificuldade de diferenciar frio e calor ou de sentir dor. A doença pode então evoluir para estágios tuberculóide ou lepromatosa, causando atrofiamento de membros e lesões respiratórias, de pele e nos olhos. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o segundo país com o maior número de casos no mundo.
Em Itapuã, quando familiares faziam visitas, tinham de ficar de outro lado de um vidro, com dois canos que marcavam a distância de um metro entre doente e alguém saudável. Nenhuma comida, carta ou qualquer outro objeto cruzava o pórtico sem ser esterilizado. Por um tempo, a “cidade” chegou a ter inclusive moeda própria, uma chapinha de latão, fabricada pela empresa de lamparinas Eberle, de Caxias do Sul. Se as freiras pegavam qualquer relato falando mal do local, a correspondência era confiscada. Com o tempo, muitas famílias iam deixando de visitar os doentes e tocando suas vidas lá fora, enquanto quem recebeu a “sentença” recomeçava outra vida.
“Esses pacientes estiveram atrás do muro para proteger a sociedade saudável. Mas não tínhamos o que dar. Aqui dentro somos uma cidade. O doente mais saudável é ensinado a cuidar do mais grave. Nós não temos enfermeiros civis, o médico entra, faz a prescrição, uma das irmãs vai ensinar o grupo de funcionários, que é um grupo de doentes. A cidade é administrada pelo prefeito eleito pelos doentes”, conta Rita.
Com a publicação do decreto de Tancredo Neves, a porta foi aberta para quem quisesse voltar ao mundo comum. Alguns pacientes foram viver em terras distantes, onde ninguém soubesse que viveram em um leprosário, outros saíram, mas voltaram pouco tempo depois. “A sociedade civil acabou fazendo com que eles tivessem que voltar para dentro do Hospital, não mais por questão de saúde, mas por uma questão social. Eles não tinham mais onde ficar”, diz Rita.
A enfermeira, que vem estudando o tema há 20 anos e está há 10 em Itapuã, acredita que, ao mesmo tempo que a política getulista contribuiu para um pânico e para reforçar preconceito contra quem tinha a infame lepra, caso a medida não tivesse sido adotada, os efeitos poderiam ter sido muito piores. “Teriam sido famílias inteiras dizimadas”.
Em 2007, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou uma lei indenizando todas as pessoas internadas contra a vontade em leprosários no Brasil. Hoje, a média de vida dos pacientes gira em torno de 80 anos. “Hanseníase não mata. Ela te deforma, mas não te mata. Quem morria, morria por pneumonia, hipertensão, AVC. Ela não interfere em absolutamente nada”. Rita conta ainda que os “ex-hanseníanos” têm a liberdade de ir e vir. Eles saem, almoçam fora, tem suas casas lá fora, avisam que vão passar 15 dias longe visitando alguém. Outros, com idade já muito avançada, vivem entre a enfermaria do HCI e suas próprias casas na cidade inventada.
Novos moradores
Os mais recentes moradores do Hospital Colônia têm uma vida diferente. Segundo Rita, para que o local não ficasse ocioso, foi tomada a decisão de levar para ali “os pacientes mais críticos do São Pedro”. O perfil deles seriam pessoas cadeirantes, “pacientes dependentes”, que eram um “ônus”.
“Nós temos espaço, nós temos equipe, aquele paciente que necessita de um cuidado mais intensivo, ser cuidado 24 horas, está vindo aqui para nós. A triagem é feita com a equipe médica daqui e a equipe médica de lá. É de lá que eles decidem quais os pacientes que virão para cá. São pacientes que, desde o seu início, nunca tiveram famílias”, afirma ela.
Na visita da reportagem, também não tivemos autorização para entrar na enfermaria ou espaços onde esses pacientes vivem. Uma decisão da nova direção, que assumiu na metade do ano passado. No site do governo do Estado há apenas duas linhas sobre quem vive hoje no Itapuã: “conta com moradores-usuários, que têm assistência não só de moradia, mas também de uma política que visa o resgate da cidadania e a reintegração social destas pessoas”.
Mas, a relação entre o São Pedro e o Hospital Colônia de Itapuã não é nova. Enquanto Itapuã foi deixando de receber pacientes com hanseníase, no final dos anos 1960, o São Pedro começou a apresentar superlotação. O Estado criou então um projeto chamado CAR – Centro Agrícola de Reabilitação – seguindo as diretrizes de uma política nacional de assistência ao doente mental. Pacientes homens, com idade entre 18 e 45 anos, que vinham de áreas rurais e tivessem diagnóstico de esquizofrenia crônica (sem cura), eram levados para viver no HCI. A proposta era ressocializar essas pessoas através da laborterapia. Em um banner exposto hoje, em Itapuã, diz-se que a criação de uma unidade psiquiátrica “reforçou o caráter asilar da instituição”. O projeto durou apenas dez anos.
Outros pacientes psiquiátricos seguiram sendo transferidos do São Pedro para Itapuã, mas por outros meios, não mais o CAR. Em 2014, quando José Ivo Sartori (PMDB) ainda estava em campanha para governador, o Sindicato Médico do RS (Simers) sugeriu a ele que o Colônia Itapuã poderia ser melhor aproveitado “para o tratamento de saúde mental”. Já no Piratini, em 2015, Sartori disse que pretendia reativar as internações de pacientes psiquiátricos no local.
As transferências estão sendo investigadas pelo Ministério Público Estadual. Em setembro do ano passado, a promotora Liliane Pastoriz, responsável pela fiscalização do Hospital Psiquiátrico São Pedro, realizou uma vistoria no local pela “possibilidade de ampliação do trabalho conjunto” entre os dois hospitais. Junto à promotoria de Viamão, encarregada de fiscalizar o trabalho no HCI, ela pediu avaliação técnica de biomédicos, enfermeiros e assistentes sociais sobre o trabalho no local.
“Estamos aguardando estas avaliações dos nossos técnicos. Tivemos parecer dos serviços médicos e biomédicos do local, agora, estamos aguardando avaliação da área de serviço social”, explicou ao Sul21. A promotora não quis dar mais detalhes sobre o caso, declarando apenas que deve ter um relatório ainda este ano. “O que a gente quer saber é se esse modelo assistencial [oferecido aos pacientes] seria adequado”.
Antes do MP, em 2016, a Defensoria Pública Estadual também já havia feito uma visita à Itapuã, enquanto investigava denúncias sobre as condições de tratamento dos pacientes psiquiátricos atendidos pelo SUS Porto Alegre e ausência de vagas em Residenciais Terapêuticos. “Quando a Defensoria Pública foi a Itapuã, não identificou violações visíveis. Estamos aguardando respostas do Estado sobre os critérios que estão sendo adotados para a transferência dos pacientes”, diz a defensora Patrícia Ketterman.
As transferências também vêm sendo questionadas pelo Fórum Gaúcho de Saúde Mental. O grupo encaminhou, no ano passado, um documento formal, por meio da Comissão de Saúde Mental, para mesa diretora do Conselho Estadual de Saúde solicitando quem são os usuários transferidos para Itapuã, quantos têm acesso a residenciais, onde seriam instalados. “Esse documento já foi e já voltou 500 vezes. Eles respondem só a parte que querem responder, fazem projeções para o futuro e não dão os nomes”, diz a psicóloga Karol Veiga.
Segundo outra integrante do Fórum, a psicóloga Fátima Bueno, o tema foi questionado em diversas plenárias do Conselho. “Nós pedimos, queríamos saber exatamente qual seria a política para [essas pessoas]. Eles usam essa coisa de transformar o hospital em referência e excelência e que os usuários vão morar melhor em Itapuã. Nós começamos a rebater esse argumento, que vez ou outra volta ao Conselho. Eles têm essa meta de 300 e poucos usuários lá”, afirma ela. Atualmente, o Hospital São Pedro possui 313 pacientes.
O Sul21 solicitou uma entrevista com o responsável pelas políticas de saúde mental na Secretaria Estadual de Saúde, Luiz Coronel, mas ele estaria em licença. Ao pedido de outra pessoa que pudesse responder questões sobre os pacientes psiquiátricos de Itapuã, fomos informados de que não havia outras fontes disponíveis.
A lei que definiu indenizações a todas as pessoas internadas compulsoriamente em leprosários estendeu o benefício para internações realizadas até 1986, para incluir os dois últimos pacientes que chegaram a Itapuã. Um casal de irmãos, eles foram levados ali por uma decisão judicial e de maneira compulsória. Segundo conta a enfermeira Rita, os dois viviam em situação de vulnerabilidade social e sem condições de cuidado. Assim que se curou, o irmão deixou o hospital. A irmã, porém, que tinha 27 anos na época da internação e marcas físicas visíveis da doença, ficou.
Hoje, ela é uma das moradoras remanescentes e só consegue lembrar de sua própria história em alguns momentos de lucidez. A última vez que isso aconteceu disse à enfermeira que trocava seus curativos que se se sentia como um pássaro de asas quebradas. Já sem forças para voar longe dali.
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