O golpe de faca que atingiu Paula Estefani Schultz Lopes Lacerda, 23 anos, partiu a correntinha dourada em seu pescoço. Do cordão, pendia o nome Benjamin, o filho de um ano e quatro meses, que ela deixara poucos minutos antes na casa da mãe. A caminho do trabalho, na manhã de 5 de março, foi atropelada pelo ex-companheiro sobre a calçada e assassinada no centro da cidade de São Gabriel.
O desfecho da vida de Paulinha se entrelaça com os de outras dezenas vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul. GZH cruzou dados de inquéritos concluídos pela Polícia Civil e registros de feminicídios, além de tentativas de assassinatos e desaparecimentos, que culminaram na morte da vítima, envolvendo contexto de gênero. Só neste ano, entre janeiro e setembro, foram mapeados 60 casos no Estado, com 62 mulheres mortas (há duas ocasiões em que, além da mulher, a sogra também foi assassinada).
Os crimes ocorreram em 46 municípios de diferentes regiões gaúchas. A maior parte das vítimas, 80%, foi assassinada no meio urbano. Foram 49 mortes na cidade e 13 na área rural. Em mais da metade dos casos (34), o suspeito é o marido, companheiro ou namorado.
Quando analisados os últimos cinco anos, há queda nos números brutos: houve 101 mortes registradas por feminicídio em 2012, primeiro ano computado pela Secretaria da Segurança Pública do Estado, e 83 no ano passado.
Simone Kellerer dos Santos, 27 anos, é uma das vítimas de 2018. Ela foi morta a facadas em fevereiro em Boqueirão do Leão, no Vale do Rio Pardo, na frente do filho de quatro anos. O marido teria quebrado seu celular e a atacado com uma facada no peito. Simone chegou a ser socorrida pela família, mas não resistiu. O homem, com quem ela fora casada por oito anos, está preso.
O suspeito é o ex em 24 dos 60 casos analisados. Também em 24 casos (40% do total), foi possível apontar que o homem não aceitava o fim do relacionamento.
Giulia Faleiro Nascimento, de apenas 16 anos, foi morta com 12 facadas, na esquina de sua casa em São Jerônimo. O suspeito é o primeiro namorado, com quem havia rompido a relação.
Para a delegada Tatiana Bastos, da Delegacia da Mulher de Porto Alegre e subcoordenadora estadual das delegacias especializadas no atendimento à mulher, a separação é o momento mais crítico.
— Não é o ciúme, não é a traição, o que geralmente as pessoas pensam. O caso é que ele não aceita o fim. O homem entende que a mulher não pode ousar decidir romper um relacionamento — analisa.
Outra característica dos feminicídios é a brutalidade. Em parte das 25 mulheres mortas a facadas, os golpes no rosto e no pescoço muitas vezes buscaram desconstituir a imagem da vítima.
— Não é só uma facada. A maioria dos feminicídios tem 10, 20, 30 facadas. O que é isso? É um sentimento de ódio, de domínio. O feminicídio pressupõe o menosprezo à condição de mulher — complementa Tatiana.
Não é o ciúme, não é a traição, o que geralmente as pessoas pensam. O caso é que ele não aceita o fim. O homem entende que a mulher não pode ousar decidir romper um relacionamento.
TATIANA BASTOS
Delegada de Polícia
Das 62 mortes, 21 foram por assassinato a tiros, sete, por espancamento, cinco, por estrangulamento e duas devido a queimaduras. Gisele de Oliveira Braz, 32 anos, foi submetida a uma série de torturas dentro de casa, em Pelotas. Teve parte do corpo queimado com ferro quente na frente das duas filhas. Gisele tinha registrado ocorrência contra o companheiro, mas depois reatou o relacionamento.
O histórico de violências, seguido do arrependimento e reconciliação, é comum entre as agredidas. O isolamento é frequente. Quando se percebe vítima, a mulher não tem a quem recorrer. Romper esse ciclo pode levar anos.
— A violência começa com a destruição da autoestima da mulher. O companheiro chama de feia, gorda, incapaz. Depois, a isola da família, dos amigos. Ela sofre tantas violências que, quando recebe um tapa, acredita que é a culpada — avalia a psicóloga Ivete Vargas, que acompanha os grupos reflexivos para mulheres e agressores no Tribunal de Justiça da Capital.
A psicóloga atenta para a cobrança por uma perfeição inatingível, que pressiona ainda mais as mulheres e faz com que se sintam culpadas.
— Para que ela receba um tapa, basta não ter cumprido alguma coisa adequadamente. Deixou a filha sair com aquelas amigas, queimou a comida, as crianças se atrasaram para o colégio. Vem a responsabilização por tudo o que não está dando certo — explica.
Diversos fatores levam as mulheres a serem vítimas das chamadas “relações cativeiro”, que podem terminar com o feminicídio: dependência emocional ou financeira, a existência de filhos e o medo do que virá após a denúncia são aspectos que contribuem para que essas relações se mantenham.
— Às vezes, a mulher confunde certas violências com amor, com cuidado. É um padrão negativo de relacionamento. Se essa mulher não sair do ciclo ruim restaurada, fortalecida e desconstruindo esses estereótipos de gênero, resolvemos esse procedimento aqui, mas ela entra em outro — alerta a delegada Tatiana.
Uma fábrica de órfãos
Nem a existência de filhos é empecilho para que o crime aconteça. Das 62 vítimas, foi possível identificar que 45 (72,5%) eram mães. Elas deixaram, no total, 81 órfãos. Com a filha nos braços, uma mulher de 33 anos (que aqui não identificamos para preservar a criança) foi morta a facadas em Farroupilha, na Serra. A menina, de um ano e dois meses, também foi atingida, mas sobreviveu.
— Muitas vezes a mulher pensa: “Ele é agressor, mas é bom pai”. Não existe bom pai agressor. Tem crianças muito pequenas que interferem, que fogem para pedir ajuda ao vizinho, que presenciam o pai matando a mãe — diz Tatiana.
No nordeste brasileiro, uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) realizada em nove Estados apontou que um terço das mulheres assassinadas deixa três filhos.
— E grande parte desses órfãos ficam sendo criados pela família do assassino — pontua José Raimundo Carvalho, professor da Pós-Graduação em Economia da UFC, que coordena a Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Familiar contra a Mulher.
No Rio Grande do Sul, não há dado preciso sobre o número de órfãos. Em 2012, reportagem de ZH mostrou que as 99 mulheres vítimas de feminicídio naquele ano deixaram 157 filhos.
No Nordeste, o estudo acompanhou 10 mil famílias. O objetivo, agora, é ampliar a pesquisa para outros locais, incluindo o Rio Grande do Sul. O levantamento, que depende da liberação de recursos do governo federal, seria feito com mil a 1,2 mil mulheres em Porto Alegre.
— O Rio Grande do Sul é um Estado que também tem uma cultura já sedimentada de machismo. É parecido com o Nordeste. A expectativa é que o projeto vá a campo entre março e abril de 2019 – afirma Carvalho.
A pesquisa mostrou ainda o impacto da violência doméstica no mercado de trabalho. O custo estimado é cerca de R$ 1 bilhão por ano, com base no número de mulheres agredidas que têm de faltar no emprego.
— Muitas mulheres passam a noite apanhando e vão trabalhar. É claro que não vão render a mesma coisa. Esse custo não contabilizamos. É algo que o setor privado precisa pensar — comenta.
Segundo o 12º Anuário Brasileiro da Violência, o Rio Grande do Sul aparece em terceiro lugar no país em feminicídios – atrás de Minas Gerais e São Paulo. Com 83 registros em 2017, apresentou redução de 14%: em 2016, foram 96 feminicídios. Quando considerada a taxa por 100 mil mulheres, o Estado é 10º no ranking, com 1,4 feminicídios – mesmo índice de Minas Gerais, Santa Catarina e Maranhão.
Proteger e prevenir
Há um ano, a Delegacia da Mulher de Porto Alegre mensura o risco das ocorrências, como forma de evitar que os casos de violência em geral cheguem à morte. Entre os sinais de alerta, estão o descumprimento de medidas protetivas, reiteradas ocorrências, dependência química e uso de arma dentro de casa – como a faca, por exemplo.
A juíza Madgéli Frantz Machado, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre, lembra que a Lei Maria da Penha prevê aspectos como prevenção e tratamento, mas são necessárias políticas públicas para que isso ocorra na prática.
— Muitas mulheres não têm capacitação. E, se forem trabalhar, não têm onde deixar os filhos. Enfrentamos dificuldades imensas de conseguir vaga em escola quando precisamos mudar a vítima de endereço. Algumas não têm passagem de ônibus para se deslocar para receber atendimento. A questão da violência doméstica precisa ser prioridade — defende.
A promotora Cristiane considera que é preciso implementar a lei de forma mais completa, especialmente na prevenção e na articulação das redes de proteção.
— O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo. Precisamos atuar para interromper o ciclo da violência antes que a morte ocorra. A gente precisa compreender que a violência doméstica é fenômeno complexo e multifatorial. A tutela penal, ainda que reforçada, de forma isolada não faz frente ao problema — afirma.
A barbárie dentro de casa
A média de idade das vítimas de feminicídio em 2018, no Rio Grande do Sul, conforme levantamento de ZH, é de 37 anos. A mais jovem, morta em Santana da Boa Vista, na Campanha, tinha 15 anos. Ela, que residia no interior do município, foi asfixiada pelo namorado, que se suicidou na sequência.
Essa é uma característica que diferencia o feminicídio. Dos suspeitos dos 62 assassinatos, 14 se suicidaram (23% dos casos). Há um 15º caso com indicativo que o autor tenha se matado — mas o corpo não foi localizado. Esse aspecto leva a polícia a comparar o feminicídio com o terrorismo.
— Só terroristas não se importam de morrer. O assassino vai fazer isso nem que seja o último ato da vida dele. Vai matar na frente dos pais, dos vizinhos, dos filhos, em qualquer ambiente — interpreta a delegada Tatiana.
Acostumada a dar palestras há oito anos sobre o tema, a policial entende que é preciso educar as crianças para romper com o ciclo de insegurança e linguagem violenta. Defende que se preparem meninos e meninas para uma sociedade igualitária.
— A violência doméstica deforma toda a sociedade. Ela corrompe a família, a comunidade, todo o tecido social. A gente fala que é a origem de todas as violências. Temos de pensar que pessoas estamos formando. Há um abandono emocional, que gera indivíduos inseguros. E o indivíduo inseguro tende a, ali adiante, tornar-se agressor. Ou vítima — analisa Tatiana.
Sem denúncia, risco aumenta
Autora do livro Violência Doméstica Contra a Mulher – Programas de Intervenção com Agressores e sua Eficácia como Resposta Penal, a promotora Catiuce Ribas Barin argumenta que o feminicídio como regra é continuidade de violências anteriores.
— O assassinato é o fato extremo, uma ponta de violências perpetradas antes. Certamente houve injúria, difamação, ameaça, agressão, tudo isso antes da morte. O número dos registros retrata infimamente a realidade vivida. São pequenos os números de registros frente à violência do mundo real — diz.
É consenso entre especialistas que os casos de violência doméstica que chegam à polícia representam parcela ínfima dos que realmente ocorrem – há muitos que não são registrados. Para tentar alcançar as mulheres vítimas, as delegacias especializadas realizam atividades preventivas, como a distribuição de materiais informativos e palestras.
— Tem risco ao denunciar? Tem. Mas tem muito mais se a mulher não falar nada. Se ela está sozinha, calada, sofrendo, só pode ser vítima de violências cada vez mais graves. Todas essas mulheres mortas gritaram, pediram socorro, apareceram lesionadas. E ninguém fez absolutamente nada. Quem consegue mudar essa dinâmica é quem está no entorno. É um compromisso que a sociedade precisa assumir — avalia Tatiana.
Há um ano, a Delegacia da Mulher de Porto Alegre mensura o risco das ocorrências, como forma de evitar que os casos de violência em geral cheguem à morte. Entre os sinais de alerta, estão o descumprimento de medidas protetivas, reiteradas ocorrências, dependência química e uso de arma dentro de casa – como a faca, por exemplo.
A juíza Madgéli Frantz Machado, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre, lembra que a Lei Maria da Penha prevê aspectos como prevenção e tratamento, mas são necessárias políticas públicas para que isso ocorra na prática.
— Muitas mulheres não têm capacitação. E, se forem trabalhar, não têm onde deixar os filhos. Enfrentamos dificuldades imensas de conseguir vaga em escola quando precisamos mudar a vítima de endereço. Algumas não têm passagem de ônibus para se deslocar para receber atendimento. A questão da violência doméstica precisa ser prioridade — defende.
A promotora Cristiane considera que é preciso implementar a lei de forma mais completa, especialmente na prevenção e na articulação das redes de proteção.
— O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo. Precisamos atuar para interromper o ciclo da violência antes que a morte ocorra. A gente precisa compreender que a violência doméstica é fenômeno complexo e multifatorial. A tutela penal, ainda que reforçada, de forma isolada não faz frente ao problema — afirma.
Oscilação nos números
Em 2012, primeiro ano em que a Secretaria da Segurança Pública compilou dados, 101 mulheres foram vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul. Em 2017, foram 83. Em 2018, até o fim de setembro, há 70 registros, oito além dos 62 mapeados por ZH. As delegacias especializadas e a Patrulha Maria da Penha são apontados como políticas de coibição aos crimes.
A abertura de novas unidades de Salas Lilás, para atendimento às vítimas, e a implantação de um aplicativo que permite às cadastradas acionar um “botão do pânico” – implementado no bairro Restinga, na Capital – também contribuem para reduzir os índices.
No país, o Rio Grande do Sul é o terceiro Estado com mais feminicídios, segundo o 12º Anuário da Violência — só Minas Gerais e São Paulo têm mais casos. Veja, abaixo, a evolução dos feminicídios no Estado ano a ano.
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