Muitos se surpreenderam com a audácia do presidente Donald Trump ao tentar minar a democracia americana. Mas, atualmente, as cenas de uma “república de bananas” não são privilégio dos EUA. O mesmo processo já está em curso no Brasil, e de forma muito mais ameaçadora. Jair Bolsonaro, o único líder entre as grandes nações a apoiar o golpismo de Trump, avança passo a passo para fortalecer seu projeto autoritário de poder. Agora, deputados bolsonaristas, agindo em coordenação com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, de André Mendonça, pretendem aprovar no Congresso duas leis que reorganizam as forças policiais, dando autonomia às PMs e tirando poder dos governadores estaduais.
Não se trata de um projeto de Segurança Pública. Esse enorme retrocesso é mais um passo do presidente, talvez o mais ousado até o momento, visando a cooptação dos militares e das forças policiais. Pela proposta, as PMs também terão generais, seus comandantes não poderão ser demitidos pelos governadores e serão escolhidos pelos pares a partir de uma lista tríplice. Os policiais poderão retomar sua carreira nas corporações depois de exercerem mandatos parlamentares. É a politização dos quartéis, tão sonhada por Bolsonaro desde que foi afastado do Exército nos anos 1980. O Legislativo ficará ainda mais povoado por fardados, fenômeno que explodiu na era Bolsonaro, e eles poderão voltar a fazer política junto a suas tropas.
Essa aberração não tem paralelo nos países democráticos. Serve na prática para driblar o poder dos governadores democraticamente eleitos criando uma quarta força armada, que pode ser instrumentalizada. No desenho institucional, essas corporações passam a se reportar também ao Ministério da Justiça. Ou seja, na prática, ao presidente de plantão. Autônoma, sem prestar contas aos gestores regionais, essa força é o embrião de uma guarda para proteger autocratas. Não é preciso muita imaginação para perceber o perigo. Há uma longa história de uso repressivo das polícias na América Latina. Os carabineros chilenos sustentavam Pinochet e a Guarda Nacional Bolivariana ainda garante com mão de ferro o chavismo na Venezuela. Também há o risco de utilização dessas instituições para interesses escusos. O próprio Bolsonaro é um exemplo. Ao pedir demissão, o ex-ministro Sergio Moro denunciou que o presidente queria indicar pessoalmente o diretor da PF no Rio de Janeiro, onde tramitam processos de rachadinha contra dois de seus filhos. Pela suspeita de interferência política, o STF brecou a nomeação de Alexandre Ramagem, amigo do clã Bolsonaro, para a chefia da PF.
Milícias e politização
As atuais Polícias Militares foram aparelhadas na ditadura com uma visão política de coibir movimentos sociais. Na época, obedeciam, a rigor, aos comandantes militares, e não aos governadores civis. Na democratização, mantiveram o status de forças auxiliares do Exército. A integração com a Polícia Civil, que seria o próximo passo lógico com o objetivo de reforçar a inteligência de investigação e prevenção em detrimento do aparato repressivo, nunca caminhou a contento. Financiar a profissionalização é o que a pasta da Justiça e da Segurança Pública deveria estar fazendo, mas ela caminha exatamente no sentido contrário, regredindo para a militarização. Reforçar a autonomia das PMs nesse momento é sacramentar esse retrocesso. Não é só. As dezenas de greves e rebeliões das PMS nas últimas décadas aconteceram contra a autoridade civil democraticamente eleita, como se viu recentemente no Ceará, em uma rebelião insuflada por um bolsonarista. Dar autonomia a essas forças é um estímulo à sedição e liberaria as corporações do controle externo democrático. O presidente investe justamente nessa cultura.
As propostas em discussão também abrem flancos para o avanço da criminalidade nas corporações. PMs processados por corrupção ou outros crimes poderão ter progressão de patente. A contaminação das forças policiais pelo crime organizado já é uma realidade como se observa nas milícias que praticam crimes, assassinatos e controlam territórios. O notório Fabrício Queiroz, operador do esquema da rachadinha de Flávio Bolsonaro, segundo o MP do Rio, é suspeito de ligação com uma milícia. O ex-chefe de uma milícia especializada em extermínios, Adriano da Nóbrega, também fazia parte do esquema e foi condecorado pelo filho 01 na Assembleia Legislativa fluminense, a pedido do pai. Na contramão de recomendações de especialistas, Bolsonaro também quer armar a população. Liberou a importação de revólveres e pistolas e exigiu que o Exército contivesse o rastreamento das armas em poder da população — e elas com frequência acabam nas mãos de bandidos. Isso nada tem a ver com a profissionalização das polícias. Os atuais projetos em tramitação na Câmara, defendidos pela bancada da bala, têm caráter corporativista e ignoram a necessidade urgente de aperfeiçoar a Segurança Pública em todo o País, que sofre com falta de estrutura e agentes mal remunerados. Para diminuir os endêmicos índices de criminalidade, é necessário mais eficiência, coordenação e alinhamento com os valores democráticos da sociedade.
Eleições na mira
Nos últimos dias, Bolsonaro deu um exemplo dessa ação mirando seu principal adversário para as eleições de 2022, o governador João Doria. Anunciou pelas redes um desconto de 20% de desconto para os policiais paulistas comprarem alimentos na Ceagesp-SP, entreposto federal na capital paulistana presidido por um coronel da reserva da PM. Procurou mais uma vez distribuir privilégios aos fardados — utilizando o dinheiro público, diga-se de passagem — enquanto atacou o rival. O local é o mesmo em que Bolsonaro reuniu uma multidão em dezembro, anunciando que nenhum “rato” iria privatizar a estatal (que estava no programa federal de desestatização). Não à toa Doria é um dos maiores críticos das propostas em tramitação no Congresso.
Istoe