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A restrição ao acesso à justiça na Lei 13.467/17

Foto: Arquivo/EBC

Antônio Escosteguy Castro

Introdução

A Lei 13.467/17, conhecida como a Reforma Trabalhista, é a maior alteração da legislação do trabalho de nossa história. Não é verdade que a CLT, datada de 1943, estava desatualizada. Menos de 25% dos dispositivos da CLT restavam iguais  ao texto original. Ela foi sempre sendo atualizada. Não é verdade, também, que o Brasil seja o campeão das ações trabalhistas. Pelos dados do CNJ, só  6,8 % das ações distribuídas no Brasil são trabalhistas e 49% delas dizem respeito a parcelas rescisórias. Mesmo em números totais, a afirmação de que o Brasil tem 98% das ações trabalhistas do mundo , propagada inclusive por um ministro do STF,  é uma inverdade. A Procuradoria Geral da República (PGR) , na ADI 5766 , que será melhor analisada a seguir,  mostra que só nos EUA houve 1.7 milhões de demandas trabalhistas ano passado. Na Alemanha (600 mil ações por ano – estudo da Universidade de Bremen), a taxa de litigiosidade (relação população ativa/ações trabalhistas) é de 1,4%, semelhante à brasileira. A Lei 13.467/17 trata-se, na verdade, de uma contra- reforma, que busca mudar o sistema protetivo da CLT.

A Contra-Reforma Trabalhista foi elaborada de maneira cuidadosa e para que pudesse ter máxima eficiência estendeu-se por três níveis. No primeiro nível, flexibilizaram-se e precarizaram-se direitos materiais assegurados aos trabalhadores na legislação então vigente. No segundo nível, fragilizou-se a organização sindical , de modo a que os trabalhadores não tenham a devida força para resistir à retirada de direitos. E no terceiro nível, dificultou-se o acesso à Justiça do Trabalho , onde tanto as normas como as atitudes patronais mais deletérias poderiam ser questionadas.

Mas é uma alteração legislativa ordinária de alguns artigos. Aqui reside um dos pressupostos essenciais deste texto. A Carta Magna de 1988 constitucionalizou os princípios e os institutos fundamentais do Direito do Trabalho. Esta constitucionalização foi o resultado da luta popular contra a Ditadura Militar e o reconhecimento da importância do Movimento Sindical na derrocada daquele regime. Acostumados com a estabilidade da CLT, que vinha da Era Vargas e que mesmo os militares não tinham atacado em sua essência, subestimamos a importância da constitucionalização do Direito do Trabalho. Pois bem, esta é, agora, a base material central de nossa luta de resistência.

A Contra-Reforma não alterou a Carta Magna e, portanto, não revogou os princípios essenciais e fundantes  do Direito do Trabalho. Ao contrário do que propaga nossa grande mídia , não foi aprovada uma Nova CLT , mas  alterados alguns dispositivos que adentram uma CLT que não foi igualmente modificada em seus parâmetros fundamentais, emoldurados pela Constituição Federal.

Não só os artigos 7º e 8º da Carta Magna não foram tocados, como também permanecem íntegros o art. 3º , o art.9º, o caput do art. 468, bem como outros dispositivos da CLT que se constituem em seus pilares jurídicos e continuam de pé. A Contra-Reforma há de ser lida, interpretada e aplicada (ou não) sob este prisma.

Some-se a isto as disposições das Convenções da OIT ratificadas pelo Brasil. Uma Convenção ratificada é de observação obrigatória pelo Estado-membro, que deve adequar sua legislação àquelas disposições. O teor do §2º do art. 5º da Carta Magna concede status constitucional às normas de tratados internacionais que digam respeito a direitos fundamentais , como é o caso de diversas Convenções da OIT, como as de nº 98,151 e 154.

Este texto pretende se fixar no exame das normas da lei 13.467/17 que têm como objetivo restringir  e dificultar o acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho, pilar essencial do processo de contra-reforma, eis que em naquele texto legal há inúmeros  dispositivos que contrariam os princípios e as garantias constitucionais do Direito do Trabalho, buscando romper com um sistema protetivo de décadas. Sem uma severa restrição do acesso dos  trabalhadores e de suas entidades sindicais à Justiça do Trabalho, o edifício da contra-reforma ficaria perigosamente em risco de forma muito rápida.

A PGR e a ADI 5766

A opinião de que  um dos objetivos da contra-reforma trabalhista é restringir o acesso à Justiça do Trabalho está longe de ser uma conjetura isolada deste autor ou de um pequeno grupo de juristas. Poucos dias depois de promulgada a lei 13.467/17 , a Procuradoria Geral da República (PGR) ajuizou a ADI 5766 visando declarar a  inconstitucionalidade de algumas expressões dos  arts. 790-B, 791-A e 844 da CLT, tal qual  introduzidas por aquela  norma.

A PGR parte  do pressuposto de que o acesso à justiça é um direito humano reconhecido no plano internacional , previsto nos arts. 8 e 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH,1948), no art. 14, item I do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos ( PISDCP,1966) e no art. 8 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica,1969) e que foi consagrado em nossa Carta Magna de 1988, no art. 5º,XXXV e LXXIV.

É garantia fundamental da  população trabalhadora socialmente vulnerável, assevera a PGR, o acesso à tutela jurisdicional de seus direitos econômicos e sociais trabalhistas, que  integram o “conteúdo mínimo existencial dos direitos fundamentais” (grifo no original), núcleo irredutível do princípio da dignidade humana, indispensável ao provimento das condições materiais mínimas de vida do trabalhador pobre.

Segundo a PGR , as normas impugnadas “inviabilizam ao trabalhador economicamente desfavorecido assumir os riscos naturais de demanda trabalhista” impondo-lhe pagamento de custas, despesas processuais e honorários , em prejuízo de seu sustento e de sua família. Para a PGR , um dos escopos da Lei 13467 /17 é a ” intimidação e restrição do pleno exercício da demanda trabalhista”.

Em que pese a excelência dos argumentos e do raciocínio da PGR, que merecem ser consultados por todos que se dedicarem ao tema, a ADI 5766 é bastante tímida em seus objetivos processuais. Mesmo tendo aprofundado o exame  sob o ponto de vista específico do Direito do Trabalho (onde o conceito de proteção ao mínimo existencial, por exemplo, se destaca) a PGR na verdade apenas busca nesta ação equiparar os sistemas de gratuidade da justiça da  CLT e do CPC.

Esta equivalência entre o sistema de acesso à justiça de forma gratuita no âmbito cível e no âmbito trabalhista é o mínimo numa sociedade civilizada ( veremos, infra,como a lei 13467 estruturou um sistema mais restritivo na CLT que no CPC)  mas não é o suficiente. As especificidades do Direito e da Justiça do Trabalho exigem um sistema de acesso à prestação jurisdicional mais amplo , de caráter protetivo ao trabalhador, como tínhamos, aliás, antes do advento da Lei 13467 e , infelizmente, a PGR pouco avançou neste sentido.

O debate constitucional sobre o acesso à justiça do trabalho na Grã-Bretanha

Aqui não se trata de buscar um exemplo ou um caso aleatoriamente, dentre tantos, para comparar com a situação brasileira. Mas, por uma feliz coincidência, quase simultaneamente com a promulgação da lei 13467 no Brasil,a Suprema Corte do Reino Unido (UKSC) julgou, no dia 26 de julho passado, inconstitucional a Lei de Taxas  que em 2013 estabelecera o pagamento de taxas expressivas aos trabalhadores para ter acesso aos tribunais do trabalho britânicos.

A UKSC atendeu, por unanimidade , uma ação do Sindicato dos Funcionários Públicos, um dos maiores da Grã-Bretanha, exatamente porque aquela lei tivera o efeito de dificultar o acesso à justiça. São raros os casos em que cortes constitucionais examinam especificamente o direito do acesso à justiça trabalhista e o longo voto (mais de 40 páginas) da UKSC partiu da verificação de que a imposição das taxas havia causado uma  “drástica e persistente”  redução no ajuizamento de ações trabalhistas no Reino Unido ( entre 66 e 70% , segundo o voto). Embora a Corte admitisse que o estabelecimento de taxas em tese fosse legítimo, não era, porém, admissível que  o desrespeito às normas do trabalho pudesse se ampliar pelo receio dos trabalhadores de recorrer à justiça , em face da possibilidade de arcarem com elevados custos.

A UKSC afirma que “o direito constitucional de acesso à justiça é inerente ao estado de direito” (the rule of law) e é um valor não apenas para os particulares diretamente envolvidos, mas para toda a sociedade. E recorda que na Inglaterra o direito de acesso à justiça está previsto desde o artigo 40 da Magna Carta, em 1215…

Lord Reed, o relator do voto, conclui (dentre outros argumentos) que a Lei de Taxas é inconstitucional se “houver um risco real de  que pessoas serão impedidas de ter acesso à justiça”, o que o estudo estatístico supra mencionado comprovou fartamente.

É impossível não traçar um paralelo entre os casos britânico e brasileiro, ainda mais que o objetivo de reduzir o número de ações trabalhistas no país é um dos motivos da contra-reforma, tal qual consta expressamente , por exemplo, do Parecer do Sen.Ricardo Ferraço, relator do PLC 38/2017 no Senado Federal (p.55). E a Suprema Corte britânica conclui, sem sombra de dúvida, que restringir de forma expressiva o acesso dos trabalhadores à justiça do trabalho contraria direito fundamental da cidadania, assegurado também por nossa Carta Magna.

O exame dos dispositivos da lei 13467/17

Neste momento em que a lei 13467 está por entrar em vigor , a melhor maneira de analisar  seu impacto no acesso à justiça é examinar uma a uma suas disposições e as alterações que trouxe em relação ao texto atual da CLT, verificando não só eventuais inconstitucionalidades e incongruências, como também construindo as formas de alargar as portas da Justiça do Trabalho que a contra-reforma  insiste em fechar. Vejamos, a seguir, as principais disposições que afetam o acesso à justiça.

A concessão da justiça gratuita

 Art. 790 – Texto da Lei:

3o É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

4o O benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo.” (NR)

Texto anterior:

3o É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal, ou declararem, sob as penas da lei, que não estão em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família.

Não havia o parágrafo 4º

No texto anterior, o patamar para concessão de ofício era menor (dois salários mínimos), mas para obter a AJG bastava a declaração de hipossuficiência. Agora, acima do patamar legal deverá “ser comprovada a insuficiência de recursos.”

O acesso à Justiça, como já vimos, é um direito fundamental e desta forma deverá ser interpretada a regra. E devemos recordar , também, que agora, em face do §1º do art. 8º, o direito comum é fonte subsidiária do direito do trabalho e pode ser usado para suprir suas lacunas.

Assim, registre-se que o §3º do art. 99 do CPC estabelece que a declaração de hipossuficiência tem presunção juris tantum. A  empresa ,pois,  deverá impugnar o pedido “com elementos”, (art.99§2º) ou seja, com algum indício consistente , e somente então poderá o juiz  exigir a comprovação da insuficiência de recursos, garantia constitucional ( 5º, LXXIV). E registre-se, ainda, que o art. 30,§2º da Lei 6015 ( Lei dos Registros Públicos), ao tratar da gratuidade dos emolumentos cartoriais,  estabelece que a declaração de pobreza do cidadão é prova de sua incapacidade financeira.

O Juiz pode negar a AJG de ofício, mas não sem oportunizar a comprovação por parte do Rte. (CPC 99§2º). E não pode “desconfiar de ofício”, porque o art. 5º da Lei 1060/50, ainda em vigor, diz que se o magistrado “não tiver fundadas razões para indeferir o pedido” deve julgá-lo de plano. Assim, o magistrado também deve fundamentar porque a declaração de hipossuficiência não é por si só suficiente para a concessão da justiça gratuita.

Não se trata, pois, um conceito numérico fixo , e a concessão da AJG há de ser examinada  ponderando as necessidades de sustento do trabalhador e de sua família.

O critério haverá de ser a verificação da situação do obreiro no momento da propositura da ação. Desta forma, há de se colocar na Declaração de Hipossuficiência a condição de desempregado ou de beneficiário do seguro-desemprego, o que há de assegurar , por si,  a concessão da AJG.

A tática processual recomendável é propor a ação como se faz hoje. Se o salário é inferior ao limite legal (ou se está desempregado), apor na inicial que é presunção absoluta , jure et de jure. Se for superior, ajuizar com a declaração de hipossuficiência e aguardar eventual impugnação para instruir. Mas tem que estar pronta a instrução…

Mas, de toda sorte, a alteração trazida pela nova redação do §3º e pelo §4º do art. 790 se afigura igualmente  inconstitucional.

Vejamos que pela redação anterior, bastava a declaração de hipossuficiência para assegurar a concessão da justiça gratuita. Por óbvio, havia casos excepcionais em que o alto salário percebido pelo reclamante levava a que o magistrado não lhe concedesse dito benefício. Mas a nova redação traz risco também para salários médios , na faixa, digamos, de 4 a 7 mil reais mensais, por exemplo , que agora justificadamente terão receio em propor ações trabalhistas em face da alta possibilidade de não serem beneficiados pela justiça gratuita , ainda que possam comprovar despesas familiares que lhes reduzam o salário efetivamente disponível.

Este tema foi enfrentado pela Suprema Corte britânica no julgamento supra mencionado. Lá se tratava, lembremos, exatamente de uma lei que estabelecera taxas para ajuizar ações trabalhistas, de 390 libras, ou cerca de 1500 reais, para ações tipo A e 1200 libras ,ou cerca de 5 mil reais, para ações tipo B. Por óbvio, num país de alto padrão de vida, haveria trabalhadores que poderiam arcar com estes valores.

A UKSC, então, para fins de exame lógico e jurídico, dividiu os trabalhadores em três grupos : os que não poderiam arcar com as custas; os que só poderiam arcar com as custas com uma sensível perda de sua qualidade de vida e aqueles que teriam condições de arcar com as custas. Mas mesmo em relação a estes, a UKSC verificou que a existência de custas altas impediria o acesso à justiça ao tornar fútil ou irracional ajuizar um processo. Com custas altas, não seria mais sensato ajuizar uma ação a não ser que o trabalhador tivesse virtualmente a certeza de que iria ganhá-la e que esta vitória o satisfaria por completo. Isto igualmente cercearia o acesso à justiça e mesmo quanto a estes a lei de taxas foi considerada inconstitucional. O trabalhador tem o direito de trazer seu pleito à justiça, ainda que seja grande  a chance de perdê-lo.

Como já tínhamos  em nosso ordenamento jurídico a regra do §3º do art. 790, que  garantia  justiça gratuita pela simples declaração de hipossuficiência, sua revogação se afigura inconstitucional pela aplicação do princípio do não-retrocesso social.

Já vimos que o acesso à justiça, bem jurídico atingido no presente caso, encontra proteção internacional por via da  Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH,1948), do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos ( PISDCP,1966) e da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969), consagrado também em nossa Carta Magna de 1988, no art. 5º,XXXV e LXXIV e, consequentemente, integrado ao chamado Bloco de Constitucionalidade, por força ,ainda, do disposto no art. 5º, §§ 2º e 3º da CF/88.

Por si só, aqueles dispositivos, aliados ao texto constitucional vigente quando da internalização, tutelam a proibição ao retrocesso, consubstanciado este em limitações que representem a perda de conquistas históricas no campo  ora em tela. A respeito do princípio, sua aplicabilidade é reconhecida em julgados do Eg. STF, como faz exemplo trecho do voto proferido pelo Min. Celso de Mello, nos autos ARE 745.745 AgR/MG:

[…] Refiro-me ao princípio da proibição do retrocesso, que, em tema de direitos fundamentais de caráter social, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, “Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais”, 1ª ed./2ª tir., p. 127/128, 2002, Brasília Jurídica; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 320/322, item n. 03, 1998, Almedina; ANDREAS JOACHIM KRELL, “Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha”, p. 40, 2002, Sergio Antonio Fabris Editor; INGO W. SARLET, “Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988”, “in ” Interesse Público, p. 91/107, n. 12, 2001, Notadez; THAIS MARIA RIEDEL DE RESENDE ZUBA, “O Direito Previdenciário e o Princípio da Vedação do Retrocesso”, p. 107/139, itens ns. 3.1 a 3.4, 2013, LTr, v.g.). Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à saúde), impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto na hipótese – de todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais […](Grifou-se)

Desta forma, é constitucionalmente inaceitável uma alteração legislativa que restrinja em tal dimensão o acesso à justiça, tornando demasiado arriscado e, portanto, impedindo a busca dos tribunais trabalhistas por expressiva parcela dos cidadãos , como asseverou a Suprema Corte dos britânicos em hipótese em tudo idêntica a esta.

IV.2 A justiça gratuita onerosa

Art.790-B – Texto da lei:

Art. 790-B. A responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita.

1o Ao fixar o valor dos honorários periciais, o juízo deverá respeitar o limite máximo estabelecido pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho.

2o O juízo poderá deferir parcelamento dos honorários periciais.

3o O juízo não poderá exigir adiantamento de valores para realização de perícias.

4o Somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo.” (NR)

Texto anterior:

Art. 790-B. A responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, salvo se beneficiária de justiça gratuita.

A nova redação do art. 790-B estabelece a responsabilidade do sucumbente de pagar a perícia, mesmo se beneficiado com a AJG, podendo  o valor ser deduzido dos créditos do reclamante, ainda que em outro processo.  Este dispositivo introduz no Brasil a “justiça gratuita onerosa”, termo cunhado pelo ex-ministro do TST Gelson Azevedo, em debate realizado em Porto Alegre, na Assembleia Legislativa e que bem demonstra o absurdo deste novel instituto jurídico.

A PGR, na supra citada ADI 5766, busca a declaração de inconstitucionalidade da expressão “ainda que beneficiária da  justiça gratuita” , presente no caput e no §4º deste artigo, entendendo que estes dispositivos, confrontados com o direito fundamental constitucionalmente assegurado à gratuidade da justiça (CF 88, art.5º, LXXIV) “esvaziam seu conteúdo e inviabilizam ao demandante pobre a assunção dos riscos da demanda”. Com toda a razão.

Se eventualmente superada a questão da inconstitucionalidade , verifique-se que esta disposição é regra mais rígida que aquela do processo civil, que no art. 95§3º do CPC determina que o orçamento público pagará a perícia do beneficiário da AJG. O caráter protetivo do Direito do Trabalho não pode permitir amparo inferior ao trabalhador que aquele alcançado ao cidadão no direito comum. Seria reconhecer uma ” capitis diminutio” pelo fato de ser trabalhador, o que contraria o básico princípio constitucional da Isonomia. Segundo Souto Maior e Valdete Severo, “o geral pretere o específico quando este último rebaixar o nível de proteção social já alcançado pelo padrão regulatório generalizante (… ) em especial quando se tratar de direitos fundamentais”. Isto significa elevar a regra geral cível ao nível de princípio, permitindo pugnar por sua aplicação com base no §1º do art.8º da CLT.

Ainda em interpretação conforme, no mínimo a Constituição Federal (CF) garante a intangibilidade das verbas salariais e alimentares, que não podem ser penhoradas ( art. 1707 do CC), cuja retenção é crime ( art. 7º,X da CF88), etc…, por serem necessárias ao sustento do obreiro e  de sua família. O salário é definido como verba alimentar por definição expressa do art.100§1º da CF. Assim, os valores a abater para fins de pagamento de despesas processuais só podem vir de verbas não-alimentares ou salariais  ( como a indenização pelo dano moral, p.ex.).

Quanto à possibilidade de obter recursos em “outro processo”, em primeiro lugar frise-se que somente poderia ser de outra  lide trabalhista , sob pena de caracterizar confisco e somente poderiam ser objeto de retenção valores ainda a pagar. Se já pagos, a coisa julgada e o direito adquirido vedarão qualquer cobrança.

Quanto à perícia de insalubridade, provavelmente o caso mais comum a ser enfrentado nos tribunais em relação à aplicação deste instituto,  esta é uma exigência legal , e não uma opção da parte (art. 195 da CLT). Por esta razão pode estar fora desta regra da sucumbência. De toda sorte, o CPC ao regrar a prova emprestada (art. 372), não a proíbe nem no caso de prova legalmente exigida. Assim, se o autor instruir a inicial com outros laudos de situação semelhante e buscar a prova testemunhal da adequação fática ao caso concreto, a perícia especifica poderá ser dispensada ou então a eventual determinação judicial de prova pericial pode eximir a responsabilidade do autor na sucumbência.

Enquanto esta regra viger, porém, o uso de perícias no processo, de qualquer forma, haverá de ser bem planejado. Requerer prazos alongados para demonstrativos contábeis da parte e o uso compartilhado de assessorias contábeis ou médicas   poderão ser uma opção factível e de menor risco.

Honorários e sucumbência recíproca

Art.791-A   – Texto da lei:

Art. 791-A. Ao advogado, ainda que atue em causa própria, serão devidos honorários de sucumbência, fixados entre o mínimo de 5% (cinco por cento) e o máximo de 15% (quinze por cento) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa.

1o Os honorários são devidos também nas ações contra a Fazenda Pública e nas ações em que a parte estiver assistida ou substituída pelo sindicato de sua categoria.

2o Ao fixar os honorários, o juízo observará:

I – o grau de zelo do profissional;

II – o lugar de prestação do serviço;

III – a natureza e a importância da causa;

IV – o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço.

3o Na hipótese de procedência parcial, o juízo arbitrará honorários de sucumbência recíproca, vedada a compensação entre os honorários.

4o Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

5o São devidos honorários de sucumbência na reconvenção.”

Texto anterior:

Não havia.

O art. 791-A institui e  regulamenta os honorários de sucumbência, recíprocos,  na Justiça do Trabalho. Mais outro rematado absurdo da contra-reforma, com o evidente objetivo de obstruir o acesso à justiça pelo incremento de riscos e custos por parte do obreiro. A existência de sucumbência do trabalhador é incompatível com o processo do trabalho, porque se mitiga, ao ponto da eliminação, a proteção ao hipossuficiente, que é base do Direito e do Processo do Trabalho, se for imposto ônus  ao obreiro pelo simples recurso ao Judiciário.

Nunca houve, nem nunca antes  se cogitou criar, honorários de sucumbência em favor da empresa na Justiça do Trabalho. O debate sobre os honorários de sucumbência surge, no Brasil, a partir da vigência do Código de Processo Civil de 1939. São derivados do princípio da integralidade da reparação do dano. O cidadão que busca na Justiça a reparação de um dano que sofreu deve tê-lo reparado na íntegra, em sua totalidade. Assim, deve lhe ser indenizado, também, o valor que despendeu com o advogado, porque se tivesse de deixar parcela do que recebeu da parte contrária para pagar o profissional que atuou – e que deve receber por seu trabalho – não teria tido o dano integralmente reparado.

Mas o instituto dos honorários de sucumbência não era considerado aplicável à Justiça do Trabalho, eis que nesta prevalecia o jus postulandi, ou seja, não era exigida a presença de advogado. Face à facultatividade da presença do advogado, algo que antes dos juizados especiais apenas existia na Justiça do Trabalho, se dizia que não se poderia onerar o vencido com despesas que a lei não reputava obrigatórias. Como a parte poderia ir à Justiça do Trabalho sem advogado, não integrava a reparação total do dano pagar algo que era facultativo.

Desde o primeiro momento, porém,  desde o surgimento do CPC de 1939, o princípio da sucumbência no âmbito do processo civil era entendido como recíproco e proporcional:

Art. 59. A parte vencedora terá direito ao reembolso das despesas do processo. Quando a condenação for parcial as despesas se distribuirão proporcionalmente entre os litigantes.

Com a CLT , sempre foi diferente . Já em sua origem inexistia a previsão de divisão proporcional dos custos do processo, atribuindo a totalidade das despesas ao vencido. Assim dispunha o §4º do art. 789:

4º As custas serão pagas pelo vencido ou, em se tratando de inquérito administrativo, pelo empregador, antes de seu julgamento pela Junta ou Juizo de Direito. Sempre que houver acordo, se de outra forma não for convencionado, o pagamento das custas será feito em partes iguais pelos litigantes.

Logo consolidou-se o entendimento de que na existência de vários pedidos acumulados, bastava um deles ser procedente para que o vencido arcasse com a integralidade dos custos do processo, o que tinha evidente sentido de proteção ao empregado reclamante. Em 1950, esta compreensão já estava consagrada até no Supremo Tribunal Federal:

Se houve cumulação de pedidos,e um dêles foi integralmente acolhido,as respectivas despesas judiciais ficam tôdas a cargo da parte vencida. Ac.STF 2ªTurma, Ag.Inst. 13707, Relator Min. Hahnemenn Guimarães, DJ de 05.07.1950, pág. 2061 , cfe.  Calheiros Bonfim, a CLT vista pelo STF, 1959.

E foi em 1950 que surgiu  a lei 1060, tratando da concessão do benefício da justiça gratuita. Esta lei era expressa em declarar sua incidência sobre a Justiça do Trabalho  e como seu art.11  estabelecia, sem deixar margem a dúvidas , de que deveriam ser pagos honorários advocatícios de até 15% do valor da condenação quando o beneficiário da justiça gratuita fosse vencedor na causa, não havia como manter a vedação absoluta dos honorários sucumbenciais na Justiça do Trabalho. A jurisprudência, portanto, foi evoluindo para assegurar a percepção de honorários sucumbenciais  desde que atendidas as hipóteses da lei 1060/50. No fim dos anos 50, a matéria já estava consolidada no âmbito do TST e em 1969, tal  entendimento tornou-se uma de suas primeiras Súmulas, de nº 11,  pacificando de vez a matéria:

É inaplicável na Justiça do Trabalho o disposto no art. 64 do Código de Processo Civil, sendo os honorários de advogado somente devidos nos termos do preceituado na Lei nº 1.060, de 1950.

Eis que, em junho de 1970, é promulgada a lei 5584/70 que , dentre diversas disposições, estabelece que a assistência judiciária de que tratava a lei 1060/50 (incontroversamente vigente na Justiça do Trabalho) seria de ora em diante  aplicada na forma que ali estava prevista, o que tem como conseqüência que somente sejam concedidos honorários assistenciais aos advogados credenciados pela entidade sindical.

De qualquer forma, nas várias décadas que se seguiram à promulgação da lei 5584/70 consolidou-se um sistema de assistência judiciária e sucumbência protetivos ao hipossuficiente no âmbito da Justiça do Trabalho , radicalmente diferente da sucumbência recíproca e proporcional vigente no processo civil. Quanto aos honorários, embora restritos aos credenciados pela entidade sindical, ficaram um privilégio apenas dos reclamantes , não se admitindo a hipótese de condenação em favor do reclamado. As custas e as despesas processuais são devidas integralmente pelo reclamado, por menor que seja sua sucumbência.

Este breve resumo histórico permite demonstrar que a introdução de honorários de sucumbência, mesmo  sob a forma recíproca, em favor das empresas contraria tudo o que foi construído em mais de 75 anos de Justiça do Trabalho.

São mais uma vez aplicáveis aqui os raciocínios da Suprema  Corte do Reino Unido no julgamento da constitucionalidade de sua Lei de Taxas.

Como vimos supra, a UKSC examinava o efeito da imposição de taxas na restrição ao acesso dos britânicos à Justiça do Trabalho. Estudos estatísticos demonstraram que a existência destas taxas reduziam drasticamente a proposição de ações trabalhistas. eis que só ações com enorme chance de êxito eram ajuizadas. Em suas razões, a Suprema Corte britânica alega que o trabalhador tem , igualmente, o direito de trazer a  juízo postulação que não tenha grande chance de vitória, mas que expresse seu sentimento de injustiça ou de discriminação com a situação. Em outras palavras, a UKSC assegurou aos cidadãos, também, um verdadeiro “direito à ação improcedente”…

Isto é ainda mais verdadeiro quando se trata, na relação de trabalho, de uma relação muito assimétrica, caracterizada pela extrema desigualdade. O direito a postular, a buscar a intervenção judicial, ainda que tênues as chances de vitória, é uma forma de assegurar o cumprimento dos direitos trabalhistas.

Conclui-se, pois, que a instituição dos honorários sucumbenciais recíprocos na Justiça do Trabalho mais uma vez caracteriza retrocesso social  constitucionalmente inaceitável, como forma altamente eficaz de restringir o acesso do trabalhador à Justiça e à proteção de seus direitos fundamentais.

Mesmo que tenha sucesso a ADI 5766 , será necessário lutar para a redução do ônus sucumbenciais, porque haverá dois anos para cobrá-los, como se vê do §4º supra.

Em segundo lugar,quanto à possibilidade de cobrança “nestes e noutros autos”, vale o mesmo princípio das custas, ou seja, não pode ser abatido de crédito alimentares e salariais do obreiro e só pode ser abatido de processo em andamento, com créditos em haver. Aqui haverá mais debate, por se tratarem os honorários  de verba alimentar do advogado. Deveremos, com base no princípio da proteção ao hipossuficiente, alegar pela completa intangibilidade das verbas salariais e alimentares do reclamante.

O limite de 15% é inferior ao CPC ( que é de 20%), o que também é questionável pelo princípio da proteção e da plena indenização do dano. E caberá invocar o §11 do art. 85 do NCPC, majorando os honorários em grau recursal , até o limite do NCPC.

O prazo decadencial de dois anos para cobrança, expresso neste artigo, mostra que não se aplica quanto às custas e honorários periciais do art. 790-B, onde tal ressalva não existe.

Também só será aplicável nos processos posteriores à lei, porque para calcular o valor da sucumbência é necessária á atribuição de valor ao pedido , como exige o art. 840§1º. Senão, é impossível saber o que foi “perdido” pelo trabalhador. O que foi  ganho, saber-se-á no cálculo.

A sucumbência parcial na Justiça do Trabalho

Um grande debate será acerca da definição de sucumbência parcial no âmbito da Justiça do Trabalho . O usual na Justiça do Trabalho são ações com vários pedidos.O que caracterizará a sucumbência parcial? Ganhar um pedido e perder outro? Ganhar parte de um? E o  caso mais polêmico certamente será o da indenização pelo dano moral. Se pedir 50 e levar 10 , é procedência parcial e deverá pagar honorários para a empresa sobre 40?

Este debate já chegou na Justiça Comum e  próprio STJ nega esta interpretação com a Súmula 326: Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca.

Há discussões entre os processualistas se a Súmula 326 teria sido ou não revogada pelo art. 292, V do NCPC, que fala exatamente da necessidade de valor certo no  pedido de indenização por dano moral, mas o entendimento majoritário é que não.

Haverá de ser construída uma teoria sobre a sucumbência parcial trabalhista, coerente com os princípios protetivos desta justiça especializada, que não só deve se escorar nos debates precedentes à efetivação da supra citada Súmula 326, como também na própria história da Justiça do Trabalho, como igualmente já se viu antes.

A Súmula 326 do STJ surge exatamente porque os julgadores da Justiça Comum verificavam a injustiça do fato de ser o réu condenado na indenização do dano moral, ou seja, ter sido confirmada sua responsabilidade no assédio ou no ato ilícito gerador do dano, mas a discussão da  graduação do tamanho da condenação  fazia, eventualmente, que se anulassem os efeitos de dita condenação ou até que se tornasse o réu credor do vencedor da ação, em face da aplicação do instituto da sucumbência parcial recíproca.

Este é o princípio a ser aplicado na construção da sucumbência parcial na Justiça do Trabalho. Se o obreiro postula 50 horas extras e só consegue provar dez, não pode um instituto processual ser interpretado de tal forma que o fato material da condenação da empresa que não remunerava corretamente o trabalho prestado seja na prática anulado ou  no mínimo mitigado ao extremo.

Lembremos que desde seus primórdios, tratando da questão das custas, o processo do trabalho as impunha ao vencido independentemente do tamanho de sua sucumbência, diferentemente do processo civil, onde a divisão das custas respeitava , desde o início , a proporcionalidade da  sucumbência de cada parte,  como vimos na comparação supra do texto do §4º do art. 789 da CLT com o art. 59 do CPC de 1939.

Estas circunstâncias devem levar à construção de uma teoria da sucumbência parcial trabalhista que não se aplica quando houver a procedência do pedido do obreiro, mas não na graduação ou na extensão de sua proposição original. Apenas o indeferimento total do pedido do obreiro deverá dar ensejo á aplicação da sucumbência parcial recíproca.

Conclusão

Não restem dúvidas de que um dos principais objetivos da lei 13.467 é restringir, severamente, o acesso da cidadania à Justiça do Trabalho. Os institutos jurídicos de que dita legislação se valeu são contrários à nossa ordem constitucional . Mas de toda maneira, ainda que não se imponha a compreensão de sua inconstitucionalidade, há mecanismos interpretativos pelos quais se deve lutar de forma a ampliar o o acesso ora restringido, frustrando, na prática, a intenção daqueles que patrocinaram a contra-reforma. Este é um debate que está apenas começando.

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Antônio Escosteguy Castro é advogado.

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